Entre 1546 e 1548, o jovem francês Étienne de La Boétie, amigo e protegido de Michel de Montaigne, escreveu o seu Discurso da Servidão Voluntária. Neste, La Boétie fez um manifesto sobre a forma como o povo, voluntariamente, entregava a sua liberdade ao governante, que na maioria das vezes os oprimia à beira da escravidão ao submetê-lo às suas tiranias em troca de uma suposta proteção. Ele acreditava que o seu discurso tiraria o povo da sujeição e o conduziria à luta pacífica pela liberdade, ao clamar: “sede resolutos em não querer servir mais e sereis livres”.

Esta relação injusta entre o povo e o governante era veementemente repudiada por La Boétie. O seu opúsculo trazia no seu texto uma crítica quase satírica, aos abusos cometidos pelos governantes, bem como à postura servil do povo, que se deixava “escravizar” por aquele que por ser apenas um humano, deveria temer o povo e não, pelo contrário, ser por ele temido. Era, assim, um manifesto contra a tirania de Henrique II, o soberano da França.

“Coisa realmente admirável, porém tão comum, que deve causar mais lástima que espanto, ver um milhão de homens servir miseravelmente e dobrar a cabeça sob o jugo, não que sejam obrigados a isso por uma força que se imponha, mas porque ficam fascinados e por assim dizer enfeitiçados somente pelo nome de um, que não deveriam temer, pois ele é um só, nem amar, pois é desumano e cruel com todos.

Grécia antiga, a suposta origem da servidão

Para dar legitimidade ao seu discurso, La Boétie apresentava diversos exemplos de servidão voluntária na história da civilização grega, cujos súditos entregavam sua liberdade e propriedade aos “cuidados” dos soberanos em troca de proteção e prestígio. Por causa disso, estes súditos se sujeitavam aos caprichos dos seus governantes, sendo muitas vezes levados ao estado de quase escravidão. Agiam assim porque acreditavam que, com isso, estariam adquirindo uma suposta liberdade, quando em verdade dela estavam abrindo mão.

Além disso, era muito preocupante para La Boétie o fato de os súditos, longe de reclamarem pelos maus tratos recebidos daquele ao qual devotavam tanta afeição, glorificarem o soberano, enaltecendo-o e cobrindo-o de honrarias e homenagens. Assim, ele supôs que o povo gostava mesmo era do estado servil, e que a subserviência parecia-lhe ser um bem, ainda que isto lhe custasse abrir mão de sua liberdade e de sua propriedade.

Os tipos de tiranos

Em suas reflexões, La Boétie inferiu que há três tipos de tiranos: uns nascem reis, outros o são pela força das armas e outros são os eleitos pelo povo. Mas segundo ele são os eleitos pelo povo que logo que se acham elevados acima dos outros, encantados com a grandeza do cargo, sucumbem à vaidade e aos vícios, esquecendo do seu compromisso com o povo que o elegeu. La Boétie resume assim as características dos três tipos de tiranos: “Os que são eleitos tratam o povo como touros a serem domados, os conquistadores como suas presas, os sucessores como um bando de escravos que lhes pertencem por natureza”.

Conclui-se das aferições de La Boétie que o ato de intimidação do povo e a perfídia aliados aos espetáculos de torturas e mortes dá aos tiranos a força que precisa para sujeitar o seu povo, que resolutamente aceita o julgo e lhe entrega a liberdade.

O homem nasce servo e tende a morrer servo

Entretanto, La Boétie argumentava que a razão pela qual alguns homens servem voluntariamente ao tirano advém do fato de eles nascerem servos e serem educados como tal. Sustentava também que, nesta condição e sob domínio dos tiranos, estes homens se tornam facilmente “covardes e efeminados”. Seria então o homem, pela sua natureza, um ser nascido para a servidão, cabendo a minoria que se acha acima dos demais para subjuga-los? Esta é uma questão que La Boétie não responde.

Destarte, o discurso de La Boétie deixa claro que o homem, como um animal social, busca, na convivência em grupo, lideranças que possam garantir a sua segurança e de sua família. Em troca, estaria ele disposto a entregar um pouco de sua liberdade, que, nas mãos de governantes inescrupulosos, logo é suprimida, tornando-o escravo do poder do tirano. Isso não mudou com o passar dos séculos.

Hoje como antes

Hoje, se vivo, La Boétie faria uma constatação interessante: notaria que os homens, covardemente, ainda trocam a sua liberdade (cidadania) pelos “benefícios” do Estado sob a forma de assistencialismo. Que alguns homens de hoje, após desejarem e tanto lutarem pela liberdade, ainda vivem sob o regime de servidão voluntária.

 

De La Servitude Volontaire