O que é fazer a coisa certa? Depende, dirão alguns. Outros defendem que há valores morais sob os quais as coisas devem ser feitas e, portanto, existe a coisa certa e a errada. Por outro lado há os que acreditam que diante da diversidade culturais tão intensas existentes entre povos e muitas vezes até mesmo num único povo é difícil afirmar com precisão o que é certo e o que é errado. Se fazer a coisa certa , como se defendem, é uma questão de justiça, como então aplicar o sentido do que é justo se não há a medida do certo e do errado?  Neste sentido, em seu livro Justiça, o que é fazer a coisa certa, o filósofo Michael J. Sandel, analisa a justiça à luz do utilitarismo, das ideologias libertárias e das ideias de Kant, Rawls e Aristóteles.

Princípios da máxima felicidade / Utilitarismo

     Não resta dúvidas que o que todos buscamos na vida é a felicidade. Para a maioria, a felicidade individual precede a coletiva, porém o indivíduo não é feliz sozinho, uma vez que esta felicidade depende do relacionamento entre as pessoas. O indivíduo só consegue ser feliz se viver em comunidade. Mas, viver em sociedades sujeita o indivíduo a regras que o colocam em constante conflito dos interesses com os dos outros. Daí surge a reivindicação por justiça.  Mas como ser feliz numa sociedade injusta? Por exemplo, os negros foram escravizado por mais de 300 anos e quando abolida a escravidão foram deixado à própria sorte. Vivendo à margem da sociedade preconceituosa passou muito tempo sem direito algum. Por causa disso, muitos acham que a sociedade deve reparar, de alguma maneira, o mal causados aos negros por séculos de escravidão.

     Alguns não se contentam apenas com pedidos de desculpas, querem bem mais que simples pedidos de desculpas e reconhecimento de erros. Essas vozes, nem sempre representantes legítimas das minorias pelas quais gritam, insurgem-se e exigem “ações afirmativas” buscando o que chamam de equidade. O regime de cota para negros entrarem em universidades públicas é um exemplo clássicos. Os defensores de cotas para as minorias subjugadas argumentam que considerando que nunca foram dadas para os negros as condições adequadas de estudo, então por uma questão de justiça social, o negro deve entrar para a universidade com critérios que compensem a sua deficiência escolar causada pelas péssimas condições fé desigualdade que a própria sociedade deveria evitar. 

     Ainda que este argumenta pareça justo, é correto que a geração  de jovens que não é responsável pela escravidão, pois pertence a outra época, e nunca tomou parte disso, arque com os erros do passado? Não parece ser justo que um aluno branco com mais de 80% de acertos em exames admissionais às universidades públicas não seja aprovado, ao passo que, no mesmo exame, um aluno negro seja aprovado com 50% ou a prova seja mais fácil porque entrou pelo regime de cota.  Muitos argumentam que não vê justiça nisso, pois pune um lado em detrimento do outro. Se devemos buscar o máximo de felicidade, uma parte do dilema apresentado parece deixar a outra parte muito feliz. Para Sandel esta é uma questão que não pode prescindir da filosofia política e do relativismo moral, uma vez que justiça e moral são questões filosóficas tanto quanto políticas. Neste sentido, Sandel analisa a ideia da obtenção da máxima felicidade à luz do utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill. 

     A principal característica dos pressupostos utilitarista é que em termos morais o bem da coletividade é superior ao do indivíduo e que, portanto, a ação moral deve buscar alcançar o maior número de pessoas, levando a elas o máximo de felicidade possível. De fato, Sandel explica que “a vulnerabilidade mais flagrante do utilitarismo, muitos argumentam, é que ele não consegue respeitar os direitos individuais. Ao considerar apenas a soma das satisfações, pode ser muito cruel com o indivíduo isolado. Para o utilitarista, os indivíduos têm importância, mas apenas enquanto as preferências de cada um forem consideradas em conjunto com as de todos os demais“. Se aplicarmos este raciocínio ao regime de cotas talvez haja nisso uma grande injustiça pois a maioria que de fato mereceria a reparação já não se encontra entre os vivos. Porém, argumenta Sandel, esses são os princípios da filosofia de Bentham e que, ao não pensar no indivíduo, ele não leva em consideração a dignidade  humana e faz a seguinte observação, “já tecemos considerações sobre duas objeções ao princípio da maior felicidade de Bentham: ele não atribui o devido valor à dignidade humana e aos direitos individuais e reduz equivocadamente tudo que tem importância moral a uma única escala de prazer e dor.

     Pensando ainda na questão das cotas e aplicando a esta os princípios de Mills sobre a liberdade individual pode-se argumentar que um problema causado no passado não deveria ser utilizado como justificativa para o regime de cotas trazendo prejuízo para o aluno não cotista pois ele teria neste caso a sua liberdade de entrar na faculdade cerceada, uma vez que apto a adentrar vê-se impedido. Sandel explica que “ao basear os direitos individuais em considerações utilitaristas, deixamos de considerar a ideia segundo a qual a violação dos direitos de alguém inflige um mal ao indivíduo, qualquer que seja seu efeito no bem-estar geral“. 

     Como a filosofia de Mills responderia à questão das cotas, por exemplo? Não parece haver uma resposta satisfatória. Sandel parece corroborar com esta ideia ao afirmar “o que acontece com os direitos individuais acontece também com os prazeres mais elevados: Mill salva o utilitarismo da acusação de que ele reduz tudo a um cálculo primitivo de prazer e dor, mas o consegue apenas invocando um ideal moral da dignidade e da personalidade humana independente da própria utilidade“. Portanto, a questão cotista assim como a descriminalização do aborto que têm uma forte componente moral geram debates intensos na sociedade porque há sempre interesses em jogo. No caso do aborto isso é mais gritante porque há um terceiro e que é vitima que não tem voz.

Somos donos de nós mesmos / a ideologia libertária.

     Um dos aspectos da justiça é a ideia da liberdade. Onde não há liberdade não há justiça. Esse pensamento leva-nos a entender que a liberdade é o princípio fundamental para a justiça. Sandel analisa o que é fazer a coisa certa para os tipos libertários. Se na visão utilitarista devemos buscar o máximo de coisas boas para o maior número de pessoas, para o pensamento libertário o que conta é a liberdade individual. O indivíduo é livre para buscar a própria liberdade e deve por conseguinte ter como objetivo a felicidade máxima, mas individual. Esta é  uma visão com aparente egoísmo que Sandel expõe sobre como o libertário vê a justiça e pensa o que é fazer a coisa certa, assim como o utilitarismo a visão libertária, como assente Sandel, contém duas contradições e não parece em nada contribuir para resolver os dilemas da vida em sociedade. Vejamos o caso da descriminalização do aborto. 

     Há os que defendem que o corpo pertence a mulher e por isso ela tem direito a fazer dele o que bem entender. Esta é  uma visão libertária. A defesa incondicional da liberdade proposta pelos libertários joga no indivíduo o peso da responsabilidade pelo seus atos porém entende que sendo ele livre, poderá fazer o que bem entender, o que reforça a opinião dos pró-abortistas. Entretanto, essa não é a visão do que são contra o aborto. Do ponto de vista da moralidade, alegam, o aborto não só é  uma agressão ao feto, mas principalmente a dignidade humana, vez que o feto ao ser abortado é uma vida em todas aa suas características.

     Neste contexto, Sandel faz duas observações interessantes. Na primeira ele aduz que “a ideia de um indivíduo ser dono de si mesmo é interessante, em especial para aqueles que procuram um fundamento forte para os direitos individuais. A ideia de que pertenço a mim mesmo, e não ao Estado ou à comunidade política, é uma forma de explicar por que é errado que eu sacrifique meus direitos em favor do bem-estar alheio” e continua Sandel… “o conceito de que somos donos de nós mesmos aparece em muitas discussões sobre a liberdade de escolha. Se sou dono do meu corpo, da minha vida e da minha pessoa, devo ser livre para fazer o que quiser com eles (desde que não prejudique os outros)“. 

     Apesar de atraente, esse conceito tem algumas implicações que não são fáceis de aceitar, observa Sandel. Se nossas mães resolvessem nos abortar, quantos de nós estaríamos ausentes deste debate? De fato não é uma questão simples, que vai muito além das questões morais. Se as mães dos abortistas os abortassem eles não existiriam para se colocarem contra o aborto. Por isso, ao não considerar justiça e direito em seus pressupostos os libertários abre precedentes para que não só o aborto, como também o suicídio assistido sejam praticados sem restrições desde que seus autores consintam. Na visão libertária o indivíduo é senhor de si mesmo. Como tal fará de si o que quiser e arcará com todas as implicações que decorram desta asserção, esclarece Sandel.

Conclusão 

      Em suma, em Justiça, Sandel nos convida à reflexão sobre as nossas decisões e escolhas. As alternativas são sempre muitas. Mas a rota escolhida quase sempre pode nos levar para a injustiça, confrontando a frágil linha que separa os direitos e os deveres de se viver em sociedade. Fatalmente sucumbimos aos nossos interesses egoístas e às escolhas, que são sempre feitas na proporção de maior benefício possível para si, buscando sempre justificativas porque merecemos um bem e o outro não, porque estamos certos e o outro errado, caminhos férteis para a injustiça.