Já faz algum tempo que a esquerda equilibra-se na beira do precipício. Os velhos discursos de “libertação” e “justiça social” tropeçam nas suas retóricas vulgarizadas por um espírito autocomplacente, apelativo e nada convincente. Os seus intelectuais de hoje ocultam-se nas sombras das ideias e dos fetiches dos seus ídolos redentores da humanidade: Deluze, Marcuse, Sartre, Foucault, Harbermas, Althuser, Adorno, Camus, Gramsci, Lukàc, em fim, uma legião de “iluminados” e suas promessas da salvação pelo socialismo exatamente como revelado pelo filósofo Roger Scruton em seu livro Pensadores da Nova Esquerda.

Há uma crise universal no pensamento, na filosofia e no espírito da esquerda. Essa crise passa por um autoexame nas reflexões dos sociólogos Aldo Fornazieri e Carlos Muanis que organizaram várias entrevistas com professores, políticos e intelectuais de esquerda em seu livro A Crise das Esquerdas, retratos de opiniões sobre o que está acontecendo com a esquerda e se existe uma saída para ela.

Como já se era de esperar, há um clima de nostalgia, de romantismo e sonho não realizados, mas nenhum reconhecimento dos erros cometidos. Isso não é novidade, pois a esquerda não pode reconhecer seus erros, porque ela acredita piamente que nunca errou, no máximo, cometeu alguns equívocos sem importância, insignificantes deslizes na marcha da salvação. Este discurso tem um propósito oculto: recuperar o fôlego para retomar a caminhada do ponto em que estagnou. Os meios pouco importam.

Os entrevistados são militantes das ideias de seus ídolos que ajudaram a esquerda a afundar na escuridão que se encontra. Suas respostas e reflexões contém as raízes do discurso redentor de quem não perdoa a ingratidão do mundo por não compreender a missão dos seus apóstolos. Os remanescentes da tragédia do socialismo enraizado em 1917, não compreendem seus erros e procuram culpados.

Para o filósofo e cientista político Renato Janine Ribeiro, a esquerda precisa reconhecer os seus erros e revisar as suas ideias e buscar melhor entendimento com a direita. Ribeiro acredita que a esquerda precisa ser menos utopia e mais compreensão da realidade das condições humanas e aceitar que suas ações não devem combater o capital, mas compreender que o modelo econômico vigente não suporta a ausência do capital. Janine adverte que a esquerda precisa desvencilhar-se do seu passado sangrento e se  auto-reconstruir. Uma análise procedente e um sentimento de pena autoinfligida, mas tardia. Nota-se na

“De modo geral,  a esquerda não gosta de redução de danos, sempre quer mais que isso. Mas há situações em que tudo o que se pode fazer é  reduzir danos, uma política valorizada nos setores mais à direita.”

“A infelicidade e a injustiça fazem parte da condição humana e estão relacionadas e múltiplas causas. Se você tentar reduzi-la a uma causa única a fim de corrigi-la  e melhorar tudo, o que você obtém é  o oposto,  ou seja, tudo piora. Um exemplo desse tipo de tentativa seria o comunismo. “

“Com o fim da União Soviética e do comunismo que esta representava, o que sobrou da esquerda nos países democráticos é  a antiga social-democracia, e o PT esta incluído nela.”

“Os valores antigos da direita desintegraram-se. Ao mesmo tempo, os meios da esquerda – controle estatal, fiscalização intensa etc.-, tudo isso acabou. Passamos a ter uma situação curiosa. Uma direita sem metas morais e uma esquerda sem meios eficientes.[…] Não há mais como a esquerda atuar na economia fora do horizonte do capital. “

“Uma nostalgia da esquerda acaba sendo um elogio do comunismo e das atrocidades que ele cometeu. Evidentemente,  a esquerda não é  só comunismo, há  muito mais que isso! Mas chega de saudade.”

“No meu caso, da universidade pública, com a aposentadoria integral. Isso gera uma situação de conforto. É  complicado que uma pessoa com essas vantagens cobre consistência teórica e ideológica de um partido. “

“Muita gente diz, com a maior cara lavada, que a esquerda se caracteriza pela maior intervenção do Estado e que o marxismo também. A esquerda pode até querer mais intervenção do Estado, mas Marx não. E quando a esquerda quer maior intervenção do Estado, ela pode até ser keynesiana, mas marxista não é.”

Tarso Genro, político e jornalista, sustenta a crise na esquerda tem duas causas básicas que foi o seu fracasso como projeto revolucionário socialista e a tentativa de acabar com a desigualdade na democracia em pais visivelmente capitalista e assevera que nem o socialismo e nem a democracia conseguiram resolver a complexa questão da desigualdade e assegurar ao mesmo tempo liberdade e direitos.

“As democracias atuais trazem as marcas da crise a que estão submetidas as promessas da Revolução Francesa, tantos as relacionadas coma expectativa de igualdade como aquelas vinculadas à liberdade.”

“A crise das esquerdas como crise da democracia e crise do socialismo- deve ser tratada, portanto, dentro de um contexto histórico em que uma crise (do socialismo) alimenta outra crise  (da democracia) e vice-versa.”

“Sustento que tanto a crise históricas dos projetos socialistas como a dos sociais-democratas devem ser pensadas como um aspecto da crise da totalidade moderna, contida na própria evolução da democracia.”

“A crise da esquerda é  uma crise, portanto, que se configura como crise do projeto revolucionário socialista e crise da ideia geral de redução drástica das desigualdades na democracia, dentro do capitalismo.”

“Nem o socialismo, como regime econômico, nem a democracia, como forma política,  adequaram-se a esses novos processos: ambos perderam potência para enfrentar as desigualdades e assegurar liberdades e direitos.”

Já para o filósofo e professor Ruy Fausto para resolver o problema da desigualdade, é necessário investir em politicas voltadas para a educação e pensar os aspectos econômicos de forma mais globais e não descarta a introdução de elementos de ambiente competitivos como a meritocracia, desde que seja observado certas condições para se chegar a liberdade e igualdade.

“Uma primeira distinção fundamental a fazer é entre esquerda democrática e não democrática. Uma segunda distinção, dentro da esquerda democrática, diz respeito à visão sobre o processo de globalização, entre uma esquerda cosmopolita e próxima ao liberalismo e outra critica à globalização e distante do liberalismo. Refiro-me ao liberalismo econômico, já que a incorporação dos valores do liberalismo político é uma marca da esquerda democrática, um divisor de águas entre esta e sua vertente não democrática.”

“A escola é um elemento fundamental para corrigir o processo de transmissão inter-geracional da pobreza. Mas a pobreza é um fenômeno complexo. Deve ser atacada de forma integral no âmbito das famílias e das comunidades. Não apenas por iniciativas estatais, mas por iniciativas públicas, que envolvam a sociedade civil. […]É preciso valorizar a esfera das relações não mercantis, no âmbito mais amplo da sociedade (e não apenas da família), para poder avançar simultaneamente nos caminhos da liberdade e da igualdade.”

“O tema da meritocracia é importante e coloca escolhas difíceis. Transformá-la em uma espécie de ideologia nos cega para o fato de que as condições reais de disputas são muito desiguais e que, portanto, é necessário discutir, paralela e indissociavelmente, quais são essas condições para aferição do mérito. Isso é fundamental.”

“Então o futuro da social-democracia é incerto, pois o seu fundamento consiste na adoção de mecanismo redistributivos.”

“Falta representatividade social. Falta mulher. É muito homens de 50 anos para cima com terno azul, entre os quais me incluo. Acho que ainda tem quadros dentro do PSDB que são acima da média,  mas o partido se desconectou da sociedade. Ou se reconecta ou não tem futuro.”

“O Brasil requer mudança. Não é possível ser conservador num país com tamanhas injustiças. Mas a transformação deve ser feita com o fortalecimento da democracia. A democracia deve ser entendida como a nossa casa comum. Podemos e devemos divergir no seu interior. Mas não temos o direito de colocá-la abaixo.”

O ativista e sindicalista Guilherme Boulos concorda com Tarso Genro quando adverte que o capitalismo brasileiro não tem  condições de atender certas política públicas devida a profundo fosso entre os interesses capitalistas e as demandas populares por mais condições de igualdade com politicas de redistribuição de rendas etc. As ideias de Boulos, navegam aqui com a clareza do “espírito socialista”.

“No caso brasileiro, a crise desnudou uma contradição e colocou o tema de que não é mais possível que haja pequenos avanços sem reformas. O que estava em jogo era uma política de inclusão de programas sociais por manejo orçamentário, sem alterar a estrutura do Estado sem mexer essencialmente em temas distributivos na sociedade. Isso chega ao teto quando a arrecadação passa a crescer menos por conta da crise econômica. E aí se coloca essa encruzilhada: ou se avança em temas centrais, como o tributário e o da dívida pública, ou então se realiza um retrocesso, uma regressão social no país, com aplicação de políticas de austeridade.”

“O tema, particularmente no Brasil, desse tipo de governo não ter sido capaz de encarnar expectativas maiores de mudança. Há uma frustração. Houve uma bonança econômica que garantiu popularidade importante na lógica do ganha-ganha, mas do ponto de vista de expectativas de mudança na sociedade, de mudanças no sistema político, o governo petista entrou na vala comum da crise de representatividade.”

“Falar em reforma urbana, em reforma agrária, em reforma tributária aqui significaria ruptura. Porque coloca em cena demandas populares que a configuração do capitalismo brasileiro não mostra capacidade de atender.”

No capítulo Sombras e Luzes à Esquerda falando sobre o destino do PT e seus paradoxismos, Cícero Araújo e Ruy Fausto alertam que:

“A deriva do PT em termos de corrupção tem, a nosso ver, os seguintes motivos: em primeiro lugar, a sobrevivência de hábitos lenistas entre os seus sobreviventes, evidentemente não no que tange ao conteúdo programático,  mas na forma de agir. Os que os faziam professar um maquiavelismo vulgar, do tipo “os fins justificam os meios”. Em contexto democrático, porém, resolveram trocar o emprego da violência revolucionária, a coerção física dos opositores, pela “persuasão” por intermédio do dinheiro.”

“Sem duvida. o abandono da meta revolucionária foi um passo correto e necessário. O gesto o exorcizava da sina comunista que marcou a esquerda do século XX. Longe estava, porém, de ser um passo suficiente, na medida em que, entre as vias alternativas, encontrava-se o modelo social-democrata; o qual, embora até certo ponto bem sucedido nos chamados “trinta anos gloriosos” da Europa, deixara também um legado sombrio de degradação ideológica e de valores. O desafio residia justamente em encontrar uma via que o distanciasse tanto dessa degradação quanto da tragédia comunista. Ciente do impacto negativo e universal da derrocada soviética, mas também da notória incapacidade da social-democracia européia de responder à altura aos desafios da onda neoliberal que avançava, ao longo dos anos 1990 o PT foi elaborando um discurso mais ou menos vago nessa direção. Faltava, todavia, o teste prático: somente ele poderia preencher, para o bem ou para o mal, as lacunas desse discurso.”

“O PT não só deixou de pôr em prática, ou mesmo de propor, um programa consistente de reformas estruturais como também não escapou à tão esconjurada degradação, especialmente a moral, que, na conjuntura aflitiva em que estamos, quase empresta-lhe o sabor de uma tragédia.”

“Há uma característica comum na linha política dos partidos de esquerda no Brasil. Eles estão preocupados com as classes populares, mas esquecem quase completamente as classes médias. Talvez até mais grave do que isso: enfatizam o pior do comportamento social e político dessas camadas. Indiscutivelmente, há certos setores de classe média radicalizados à direita. Pode-se mesmo dizer que parte delas é, não propriamente fascista, como se pretendeu, mas pelo menos fascistizante. Mas se trata de setores, não da totalidade, embora sejam consideráveis em termos quantitativos. O que não elimina a evidência que poucos na esquerda querem ver: uma parcela, e não tão diminuta, das classes médias – parte à qual nós (digo, a intelectualidade de esquerda) pertencemos e, por isso mesmo, paradoxalmente, o fato é obscuro…- tem posições progressistas no plano social, nos das liberdades democráticas e no das questões comportamentais (à qual está, em geral, melhor predisposta do que muitos setores das classes populares). […] Mas o que é trabalhar com a classe média? Em primeiro lugar, significa deixar de desqualificá-la. Acabar de uma vez por toda com só discursos que as satanizam…

Historicamente a esquerda sempre se reinventa, mantendo-se fiel aos princípios que a concebeu. Aqui mostra-se a tentativa de encontrar novos caminhos, não no reconhecimento de erros dos seus princípios, mas de estratégias para um fim revolucionário.