Os séculos XX e XXI ficarão conhecidos na história da humanidade como os séculos das ideologias. Nunca um sistema de ideias influenciou tanto a consciência coletiva e causou tantas transformações no mundo como as ideologias. Para compreender essas transformações é necessário conhecer os fatores que lhes deram origens. Desde a Grécia antiga, estes sistemas eram formados por muitas ideias polarizadas. Ao nascer, o liberalismo trazia para o século XVII uma nova percepção para as ideias políticas, e com ela, todo um movimento de oposição. Assim, das eras clássicas do pensamento liberal até os dias de hoje, as teses antiliberais se fizeram presentes nos caminhos do liberalismo. Deste modo nasce a luta entre os liberais e os antiliberais.

Para entender o significado destas colisões de ideias e suas consequências, o livro “Liberais e Antiliberais”, de autoria do filósofo e cientista político Bolívar Lamounier, é leitura bastante recomendada, seja pela sua análise metodológica, ou pela síntese do pensamento liberal que nos oferece. Por conseguinte, Lamounier conduz o leitor pelos labirintos das antíteses das ideologias, assim como convida o leitor para uma série de reflexões que buscam despertar nele outras formulações do pensamento liberal, afinal, as ideias precedem as ideologias e estas na concepção de ideários são prerrogativas do indivíduo para sua afirmação. Para melhor compreender tal afirmativa, convém abrir este diálogo com a seguinte reflexão de Lamounier:

“É nos indivíduos, as menores unidades da história, que melhor percebemos como a forma e os contornos dos acontecimentos variam segundo a posição do observador. Muitas vezes não há uma, mas muitas histórias possíveis”.

Liberalismo vs Antiliberalismo

O pensamento liberal é, por definição, um conjunto de ideias que almeja defender e difundir os valores voltados para a felicidade do indivíduo cujo maior deles é a liberdade. Da liberdade, nasce a noção de propriedade, e é em torno destes veneráveis valores que o indivíduo ambiciona as mais altas realizações humanas. Segundo este conceito, o liberalismo é que melhor incorpora a ideia de direitos e Democracia.

“O liberalismo situa-se na antípoda do fascismo e do marxismo. Contra todo o holismo, sua epistemologia consagra o primado do individualismo metodológico e de uma razão aproximativa, ou seja, do conhecimento por tentativa e erros. ”

Em contrapartida, o antiliberalismo é um sistema de crenças que defende a restrição da liberdade do indivíduo, vez que o antiliberal desqualifica todos que não se encontram dentro dos seus parâmetros. Só compreende a realidade pela sua ótica e faz da sua liberdade a prisão do outro. Só enxerga o coletivo em detrimento do indivíduo e acredita apenas nos meios comunais de produção. Põe o Estado como a divindade única para felicidade humana. Viver sob estas crenças torna o homem incapaz de compreender a si mesmo, pois ele não se pertence, e sim aos mitos que cultiva.

O pensamento antiliberal inspira-se nos programas marxistas de revolução social; aposta na força da militância, no falso conceito de liberdade e se coloca como os únicos conhecedores da natureza humana. Pretensos guardiões da Democracia, o que não deixa de ser uma contradição, posto que sua experiência sempre se deu pela força. Além disso, os antiliberais acham-se niveladores da igualdade e arauto da fraternidade. Herdaram o comunismo e o socialismo como a única via de redenção do homem social. As convicções socialistas têm como objetivo o partido único e portanto trabalham corroendo a Democracia, posto que o socialismo só se implanta e se mantém pela violência das armas. Lamounier sustenta que elas não oferecem perigo quando a Democracia se encontra sob a égide do liberalismo e que esta condição rechaça as ideologias antiliberais. Daí a sua afirmação:

“A centralidade do liberalismo político entre os pilares principais do regime democrático permite-nos afirmar que é antiliberal qualquer teoria, ideologia ou doutrina que se contraponha às estruturas institucionais da Democracia representativa. ”

Os ídolos de Bacon

Nessa obra, para melhor entendimento de todo este processo, Lamounier se inspira nos métodos indutivos de Francis Bacon (1561-1626) utilizado para investigar fenômenos da natureza, conhecido como “Os quatro ídolos de Bacon”, que afirmava que estes ídolos representam falsas noções, preconceitos e maus hábitos mentais que bloqueiam a mente humana. Lamounier os converte para os quatro gêneros, ou atitudes políticas, para compreender a relação de causa e efeito dos componentes das duas ideologias. Bacon assim definia os seus ídolos:

  1. De associação – ao generalizar a partir de uma amostra diminuta (os ídolos da tribo);
  2. De individualismo – ao inferir de forma irrefletida (os ídolos da caverna – alusão à alegoria da caverna de Platão) sem levar em conta as consequências dos atos;
  3. Do discurso – ao distorcer a realidade mediante retórica (os ídolos do foro);
  4. Da crença – ao impor uma visão como unicamente correta (os ídolos do teatro) ignorando o ponto de vista do outro;

O arcabouço mental de Lamounier assim descreve os seus quatros ídolos: da tribo, da caverna, do foro, e do teatro. Para cada um deles, Lamounier estabelece fundamentos e processos. Portanto, o entendimento dos ídolos de Bacon é pré-condição indispensável para compreender o pensamento de Lamounier. Ele organiza assim este conjunto lógico de asserções para fazer a análise política e, desta forma explicar a origem do desvirtuamento destas ideias:

O homo politicus (ídolos da tribo) – é representado pela natureza humana. O indivíduo, o autoconhecimento e a ação coletiva são alguns atributos que reúnem os homens em torno de uma ideologia e, sob o domínio desta, alguns deixam-se subjugar pelos seus vícios morais e desejo de poder, enquanto outros se submetem à vontade de uns poucos.

Para Lamounier, a história nos dá exemplos desta natureza autocentrada em si mesma. Ele argumenta que Lenin, Stalin e Trotski representavam bem o ídolo da tribo porque se encontra neles a psicologia da ação coletiva. Lamounier sustenta que o holismo marxista dificultou a consciência do seu próprio papel por parte dos líderes soviéticos. Lamounier acredita que quem melhor compreendeu este processo foi o Lenin e a sua concepção do partido-vanguarda através da subordinação das massas.

Todavia, como um uma classe incapaz de se mobilizar em torno de objetivos mais amplos que seus interesses econômicos mais imediatos possuirá o status de sujeito da história? Para Lamounier, Lenin saiu pela tangente nesta questão para evitar respostas simpáticas às ideias econômicas de Adam Smith e, assim, parecer nutrir alguma simpatia pela burguesia.

Lamounier mostra que fenômeno inverso ocorreu recentemente no Brasil, quando a pressão coletiva, feita pelas pessoas nas ruas, foi fundamental para o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

Ideologia e realidade (ídolos da caverna) – ideologia versus realidade: a pretensão marxista de encaixar o devir histórico em modelos antiliberais, que influenciam negativamente o pensamento do homo politicus ao subverter a realidade vivida.

“A segunda injunção de Bacon é não nos fiarmos demais nas primeiras impressões, que podem ser simples aparência”, observa Lamounier. Ele também adverte que é necessário aprender a ver a verdadeira realidade, sair da caverna platônica, compreender a verdade e não a sombra. Portanto, conhecimento é fator fundamental para ter uma visão clara das coisas, uma forma de não se alienar nas ideologias.

Lamounier explica que “este modo de pensar fundada em disjuntivas hipostasiadas é rigorosamente incompatível com a epistemologia liberal”, porque, como ele afirma, o liberalismo evita a contraposição platônica entre opacidade e transparência.

Recriação e Purificação (ídolos do teatro) – impulsos ideacionais na transformação da sociedade: busca-se nas ideologias a construção de utopias e apologia aos seus ideólogos. É uma análise sobre pensadores aos quais tendem a demonstrar uma excessiva deferência.

Rousseau é destaque neste ídolo. Nenhum pensador recebeu mais deferências que ele. Ele foi a raiz da grande parte das utopias que lhes sucederão. Por isso, Lamounier constrói suas reflexões sobre as ideias de Rousseau que, para ele, não foi só um grande filósofo, mas, sobretudo, um grande profeta. Isto porque, segundo o autor, deve-se a Rousseau “a percepção da grande solidão do individuo na sociedade moderna e a necessidade de vínculos afetivos mais densos com os quais os homens pudessem se identificar plenamente”.

Conceito de Democracia (ídolos do mercado) – deformação nos conceitos sobre os regimes políticos. Ou seja, o desvio da reflexão política dos caminhos da verdadeira Democracia.

Lamounier argumenta que o desvirtuamento da reflexão política tem por origem certos equívocos comuns a respeito do conceito de Democracia, que é causado pelos descuidos da linguagem e do raciocínio. Este erro tira o indivíduo do caminho que conduz a verdade. Este é um problema que surge, segundo Lamounier, porque não há cuidados ao refletir objetivamente sobre as questões política do nosso tempo. Ele afirma que “a maioria dos cidadãos parecem sonhar com o bônus de viver numa sociedade civilizada, mas sem o ônus de sujar as mãos na desagradável malha de que a atividade política por toda a parte se reveste”.

Lamounier afirma que a Democracia é arcabouço institucional concebido como um meio para tornar pacifico o equacionamento da multiplicidade de demandas e antagonismos inerentes às sociedades modernas.

“Democracia é o governo do povo para o povo”, esta é uma expressão que denota um engano se refletida sobre a axioma de Lamounier, que diz que sobre a questão da soberania popular “a Democracia seria na melhor das hipóteses um anseio utópico que só se poderia realizar depois de décadas ou mesmo séculos de educação popular”.

Desta forma, ao utilizar os ídolos de Bacon para propor estas reflexões Lamounier demonstra que a luta entre liberais e antiliberais seguirá seu curso na tentativa de estabelecer um sistema de governo que esteja harmonizado com a vontade e as necessidades do povo. Esta é uma luta que precisa ser bem compreendida para não nos deixar levar pelas falsas impressões de profecias dos demagogos.

Ao encenar esta trama da vida política, seus atores – os homens médios – fazem de cada instante o elo entre o passado e o futuro para moldar os capítulos da nossa história. Se esse drama terá um final feliz, depende da nossa atuação na vida em sociedade. As reflexões de Lamounier são investigações e análises dos conflitos de interesses que rondam as Democracias modernas e das coisas políticas que subvertem a moral do homem. Por isso, esta é uma luta árdua entre dois lados que querem representar a verdade. Para Lamounier esta é “a luta ideológica do nosso tempo”.