Segundo o Wikipédia, a história do liberalismo começa na Guerra Civil Inglesa (1642-1649). Sob a liderança do militar e político Oliver Cromwell (1599-1658), o Parlamento Britânico pôs fim no reinado de Carlos I, condenando-o à morte por traição. Neste mesmo período, o jovem inglês John Locke (1632-1704) construía as suas teses sobre a liberdade, a propriedade e os direitos naturais do homem. A sua filosofia política fundamentava-se no princípio de que o rei devia ter o consentimento do povo para governar e, ao fazê-lo, deveria proteger a liberdade e a propriedade do indivíduo. Portanto, germina em Locke os princípios do liberalismo, passando mais tarde a ser conhecido como o fundador desta doutrina. Esta foi uma breve introdução sobre a origem do pensamento liberal clássico. Um resumo do resumo, por assim dizer. Entretanto, a história do liberalismo, examinada nos seus mais ricos detalhes e profundidades, estaria longe de ser um retrato fiel aos seus valores se este exame não fosse um mergulho nas principais ideias, liberais ou não, daqueles que junto com Locke, aperfeiçoaram os princípios do liberalismo. A tradição do liberalismo dependeu não só das teorias políticas e filosóficas de Locke, mas também da contribuição de muitos outros pensadores. Assim nasce a história intelectual do liberalismo.

   Agora, convido o caro leitor a fazer imersão na história intelectual destes que consolidaram o liberalismo clássico. O livro “História Intelectual do Liberalismo”, de Pierre Manent, professor de filosofia política, é uma excelente opção. O livro pretende, em dez lições, introduzir o leitor na origem, na formação e na evolução do pensamento liberal a partir da investigação das obras dos autores clássicos. Na Europa do século XIII, envolvidas em sérios conflitos religiosos, em que a Igreja cristã, muitas vezes, tinha mais poder que o rei, havia uma grande questão que precisava ser resolvida. Manent chama esta questão de problema teológico-político. Depois da queda do Sacro Império Romano, quais formas políticas estavam à disposição dos homens? Indaga-se Manent. Se existisse a tal forma política, como ela resolveria o problema teológico-político? É através destas proposições que Manent conduzirá o leitor a história intelectual do liberalismo.

A improvável associação entre Maquiavel e a democracia

   A igreja é o grande problema. Segundo Manent, as primeiras manifestações contra os abusos da igreja nascem nas obras de florentinos como Dantes, Marcilio de Pádua e Boccacio. Ele explica que é desta Florença que surgirá aquele que será um dos mais ferrenhos opositores da Igreja, a saber, Nicolau Maquiavel (1469-1527). Manent argumenta que talvez o florentino Maquiavel fosse o único capaz de dar respostas para o problema teológico-político. Para Manent “este problema foi resolvido, não sei se resolvido, mas em todo o caso foi decidido, dois séculos mais tarde, também em Itália, por Maquiavel. […]Com, Maquiavel é a experiência moderna que descobre a expressão própria, ou antes, que encontra uma interpretação de si própria que vai decidir da orientação do espírito europeu e, portanto, da história da política europeia, até hoje”. Em princípio, a afirmação de Manent causa mal-estar, uma irritação moral. Entretanto, quando olhamos para a Europa medieval, carente de um pensamento político desvinculado da Igreja, faz todo sentido. Mas, ainda assim, por que começar com Maquiavel? Não seria um contrassenso associar “a fecundidade do mal”, termo que próprio autor utiliza para se referir a Maquiavel, às ideias liberais? Em princípio, não há nada de liberal em “O Príncipe”. Para Manent “simplesmente, segundo Maquiavel, o príncipe que souber apoiar-se no povo contra os grandes, sem confundir o seu interesse, ou o seu ponto de vista, com os do povo, terá a possibilidade de fundar uma ordem estável”

   Percebe-se nesta asserção algo da vontade popular sobre a vontade do soberano iniciado por Maquiavel. Manent observa que “desvalorizando radicalmente as pretensões dos grandes à virtude, e fazendo do povo o único suporte da honestidade que se pode encontrar na cidade, Maquiavel é o primeiro pensador democrático”. Com efeito, pode-se conjecturar que o Leviatã de Hobbes será construído sobre o príncipe de Maquiavel, ou seja, sobre sua filosofia política. “No encadeamento de ações e sentimentos, ou paixões, que Maquiavel descreve como um episódio dramático e instrutivo, Hobbes verá a própria lógica da ordem humana”.

Nasce o Leviatã

   Em “Hobbes e a nova arte política”, capítulo precedente, Manent mostra que Hobbes extrairá de Maquiavel o fundamento da sua política voltada para cidade e dará a esta a forma de Estado. Manent afirma que, desta forma, é o próprio povo e não a parte do corpo político que, na ausência do medo, parte inerente a doutrina de Maquiavel, tomará a iniciativa política. O povo, satisfeito e estúpido em Maquiavel, vai querer saber como se obtém esta satisfação em Hobbes, ou seja, o povo passará a ser inteligente. Para Manent a experiência da Guerra Civil Inglesa leva a entender que nem a natureza (indivíduos convivendo na ausência de uma ordem ou estado de natureza), nem a graça (que se encontram numa ordem, todavia ela é religiosa) podem reunir os indivíduos em torno de um estado de coisa que não seja mera opinião. Ele argumenta que somente a arte política manifesta-se como um real modelo nas associações e, esta arte política será dada por Hobbes.

   A guerra civil inglesa, o estado de natureza, o poder da igreja foram os elementos que forneceram subsídio a formação do Estado absolutista de Hobbes sendo que é no estado de natureza que Hobbes legaliza os seus argumentos e é sobre este estado de natureza que Manent sustenta que:

“O que acabo de tentar sugerir é a razão de ser do aparecimento do estado de natureza em Hobbes como noção-chave da reflexão política, que perdurará como tal durante mais de um século durante o período formador dos regimes liberais modernos: o estado de natureza é a condição dos homens antes de qualquer obediência à cidade ou a igreja, condição a partir da qual se pode reconstruir um corpo político invulnerável ao seu conflito. É certo que na doutrina de Hobbes essa noção não aparece como a hipótese a qual conduz o projeto de superar o conflito entre a política e a religião, mas como a realidade produzida pelo conflito real: A guerra de todos contra todos.”

Locke e os princípios do liberalismo

   A doutrina de Hobbes não é liberal, isto fica evidente ao examinarmos às suas ideias. Mas então, por que Manent o inclui entre os formadores do pensamento liberal, dado que toda a sua obra repousa sobre a formação do Estado e a organização política?  Manent esclarece que é pelo medo da morte em guerra o indivíduo aceita o Leviatã de Hobbes, enquanto é o medo da fome que fundamenta a doutrina de Locke. Em ambos o indivíduo, o hobbesiano e o lockeano, está presente o direito à conservação. No primeiro a busca pela segurança, no segundo pela proteção dos direitos 

   Para Locke, sustenta Manent, é a fome que ameaça a conservação do indivíduo e é sobre esta noção que Locke evoluirá os princípios do liberalismo, pois é a fome que o fará se apossar do que a natureza lhe oferece e é a fome que dará ao indivíduo a noção de posse e logo de propriedade. Através de uma analogia simples, Manent demonstra que o que o Locke acreditava é que a natureza oferece ao indivíduo o seu alimento e este torna-o sua propriedade, ou o seu primeiro bem, a sobra do alimento que não é consumida transforma-se em valor de troca entre os indivíduos e esta será a raiz da economia liberal. Então é o trabalho ou esforço em colher o fruto para sua alimentação que dará a noção entre trabalho e propriedade. Assim, segundo Manent explica, Locke estabelece duas proposições consideráveis: o direito de propriedade e a relação do indivíduo com a natureza, ou seja, o trabalho. Entretanto esclarece Manent, a posse do alimento como propriedade não é uma boa ideia e o próprio Locke transfere para a terra a noção de direito de propriedade, assim a terra e tudo que nela há estabelece as premissas para as teorias sobre o individualismo lockeano e, portanto, centrado no indivíduo nasce o conceito que hoje chamamos de liberalismo. Portanto, é o trabalho humano que dá as coisas o seu valor e não a natureza, sustenta Manent. “Desde que a propriedade, que entrou no mundo pelo trabalho, se tornou valor representado pela moeda, o direito do proprietário foi legitimamente destacado do direito do trabalhador”. Manent demonstra também como o Locke pensou numa solução para a resolver o problema Hobbesiano, a saber, a transferência de poder para o Estado. Manent explica que “A objeção de Locke é bem conhecida: transmitir todos os direitos a um soberano absoluto não é sair do estado de guerra, é agravá-lo”. O que fazer então? Indaga Manent. Ele explica que as leis que declaram particularmente o que é meu e o que é seu precisam que se imponha igualmente a todos e que ninguém dela esteja fora, nem mesmo o soberano, e mais, para que a lei não seja opressiva é necessário que cada um tenha contribuído para sua concepção e promulgação, por si ou através dos seus representantes, ou seja, conforme Manent “sair do estado de natureza ou entrar numa sociedade civil é essencialmente constituir uma assembleia legislativa”. O poder supremo deve exigir obediência e ele mesmo deve estar sob os escrutínios da lei para evitar abusos. Desta forma Manent diz que “só um corpo legislativo e soberano preenche essas duas condições”. Locke então cria a sua noção de poder executivo e legislativo, onde o segundo tem o poder representativo e deve monitorar o primeiro. Assim Locke foi o primeiro a formular a ideia de representação política. Manent conclui que “E uma vez que o liberalismo político repousa historicamente, e essencialmente, sobre ideias de representação, admitir-se-á que por certo que a tensão que evidenciei entre política e representação surgirá sempre necessariamente em qualquer tentativa de definição de uma política liberal”.

Conclusão 

   Desse estudo conclui-se que o liberalismo de ontem, o conhecido liberalismo clássico, continua sendo a base para as diversas direções que o liberalismo seguiu. Em todas elas a ideia germinal é a liberdade, pois é o valor mais almejado pelo homem sobre todos os outros valores. Neste sentido, Locke, que utilizou a propriedade como o valor mais importante para a suas ideias liberais, se valeu do que de fato é mais importante, ou seja a propriedade. Numa escala de valores dentro do liberalismo a propriedade pode se posicionar como a mais importante pois dela deriva todos outros valores pois, a propriedade pressupõe a vida, os bens a própria liberdade. Dessas acepções derivou-se às mil vertentes do liberalismo moderno. Por isso a leitura do livro A História Intelectual do Liberalismo é altamente recomendada.