Uma das grandes obras de Ludwig Von Mises, o livro “Liberalismo”, inscrito em 1927, é um complemento à sua obra anterior sobre o socialismo intitulada “O cálculo econômico sob o socialismo” que segundo alguns, ao mostrar como o liberalismo funciona, é uma resposta de Mises às teorias do socialismo que, na prática, nenhum teórico foi capaz de dizer como o socialismo realmente funciona. De fato, esta é uma questão que deve ser repensada pois, até mesmo nos dias de hoje, nenhum defensor do socialismo descreve de fato como seria uma sociedade estruturada em sua totalidade pelo socialismo, com os seus vários aspectos sociais a considerar, com toda a sua complexidade e com o dever de atender, sobretudo, os anseios da das pessoas e suas necessidades, que são no fundo individualista por natureza e egoísta por princípio, envolta por um turbilhão de conflitos, cujo o único objetivo é primeiro a realização pessoal. No preâmbulo, tão bem escrito por Louis M. Sadaro para esta edição lista algumas críticas feitas por aqueles que acreditam que, observou Mises, “os inimigos do liberalismo o rotularam como a ideologia que defende os interesses especiais dos capitalistas“. Vejamos algumas para contextualizar: 

“O Liberalismo sofre de uma fixação do desejo de aumento da produção e bem-estar material e, persistentemente, despreza as necessidades espirituais do homem.” 

“Não há como negar que o capitalismo é, em essência, um sistema estruturado para favorecer gente rica e de posses, à custa das outras classes.” 

“Por sua própria natureza, a economia de mercado competitivo, na melhor das hipóteses, não conspirará contra a paz internacional, e, na pior das hipóteses, não promoverá, de fato, as guerras?” 

“Que defesa poderá haver de um sistema socioeconômico que produz tão grandes desigualdades de renda e consumo?” 

   Estas são algumas entre várias críticas feitas pelos opositores do liberalismo. Entretanto, todas elas não resistem ao escrutínio. É evidente que além das análises das ideias do liberalismo econômico, Mises discorre também no campo da filosofia e da história para mostrar que o liberalismo é mais que teorias econômicas, e procura nesta obra cobrir uma lacuna que o pensamento liberal moderno deixava na doutrina: a de quê diferente do socialismo e dos seus defensores que nunca foram capazes de explicar o socialismo na prática, o liberalismo é uma doutrina cujos objetivos e prática estão evidentes em si mesmo. Mises propõe também nesta obra, não só teorizar mas demonstrar que o liberalismo, em todas as suas dimensões, econômicas, sociais e políticas é mais que um conjunto de teorias econômicas. Desta forma Mises demonstra que o liberalismo contribui para a paz mundial e a felicidade do indivíduo. Neste contexto, a obra Liberalismo ganha um relevo importante na literatura teórica e prática das idéias liberais e faz desta a precursora de novas correntes sobre o pensamento liberal. 

   A política econômica liberal é por definição de Mises um sistema que pretende produzir e organizar a riqueza através da propriedade privada dos meios de produção através da auto-regulação cujo maior objetivo é progresso material do indivíduo. Segundo Mises dos cinco sistemas de organização da economia para a cooperação entre indivíduos, o capitalismo é o mais eficiente e o único que tende a acertar. Dos quatro restantes, a saber, o sistema sindicalista, o socialista ou comunista, o sistema intervencionista, apenas este último é um Frankenstein formado por parte do sistema liberal ou capitalista e parte socialista, para Mises uma alternativa tão fracassada quanto a opção socialista não há. O sistema de propriedade privada dos meios de produção, que segundo Mises, em seu estágio mais avançado é o capitalismo, é o fundamento de qualquer civilização. A despeito do que sustentam os progressistas de que a propriedade privada é a causa de os ricos serem mais ricos e os pobres mais pobres, Mises sustenta que “Todo trabalhador precisa exercitar-se ao máximo, uma vez que seus salários são determinados pelo produto de seu trabalho, e todo empresário precisa esforçar-se para produzir a custos menores, isto é, com dispêndio de capital e trabalho menor do que o de seus concorrentes”. Ora, nesta expressão que sintetiza a relação de igualdade entre patrão e empregado no tocante aos objetivos a serem atingidos, está definida toda a engrenagem que movimenta a economia e gera riqueza.

   Entretanto esta relação não existe na sociedade capitalista. Para Mises ” Numa sociedade socialista, todo indivíduo pensa que depende menos da eficiência de seu próprio trabalho, uma vez que lhe é atribuída, de qualquer modo, uma quantidade fixa do produto total, e essa quantidade não pode ser diminuída, de maneira considerável, pela perda resultante da indolência de qualquer dos homens. Se, como é de se esperar, esta convicção se tornar generalizada, a produtividade do trabalho cairia, consideravelmente, numa sociedade socialista”. Isto porque, Mises explica, o cálculo de produção por trabalhador não é possível numa sociedade socialista e desta forma conclui que “o que torna impraticável o socialismo é, precisamente, o fato de que é impossível o cálculo desse tipo, numa sociedade socialista”. Até aqui o sistema econômico socialista fracassa se comparado ao capitalismo. 

 Seria então o intervencionismo a solução opositora ao capitalismo? Mises explica que não. Sendo o intervencionismo, conforme definição de Mises, uma terceira saída para o fracassado sistema socialista, “uma forma de sociedade que ficasse a meio caminho entre a sociedade privada dos meio a de produção de um lado, e a propriedade comunal dos meios de produção, de outro”, a existência da propriedade privada só se dará através de instrumentos regulatórios, dirigidos e controlados por decreto. Deste modo passa-se a impressão de um mercado regulado que segundo Mises “de um capitalismo circunscrito por regras autoritárias de propriedade privada, podadas de suas características acessórias, alegadamente danosa, pela intervenção das autoridades” que torna – se uma política sem sentido, auto anuladora e absurda. Mises sustenta que “toda a política e todo o programa do liberalismo destina – se aos serviços de manutenção do estado de cooperação mútua entre os membros da raça humana, estendendo-a mesmo além”, bem como afirma que o liberalismo tem como ideal a perfeita cooperação de toda a humanidade, pois, para ele, o fim último é a paz, sendo esta uma condição para a paz mundial. 

   Na defesa do livre comércio, Mises defende que total liberdade comercial entre as nações. Aqui ele discorre sobre a importância da mobilidade do capital e trabalho entre as nações. Nesta época o conceito de globalização não tinha a largura a profundidade de hoje, mas já deixava claro se houvesse restrições ao livre comércio entre os países o resultado seria a regressão ao nacionalismo, a reserva de mercado e ao protecionismo. Mises certamente ficaria maravilhado se hoje vivo ao observar que o consumidor no Brasil liga para um call center na Índia para saber sobre informações da sua encomenda empacotada nos EUA e fabricada na Alemanha. Este cenário real, representa bem o que Mises previa em suas teorias econômicas. Um mercado global pungente onde houvesse descentralização do trabalho através das barreiras culturais de linguagem e até mesmo ideológicas. Desta forma pode – se afirmar que a propriedade privada dos meios de produção ganha status globais. Veja o que diz Mises a esse respeito: “O ponto de partida de toda a filosofia política liberal é a convicção de que a divisão do trabalho é internacional e não, simplesmente, nacional”. 

   Na introdução desta obra, Mises examina vários aspectos do liberalismo que conduzirá o leitor às premissas para a compreensão da obra, dos quais destaco três. O primeiro deste aspecto diz respeito ao “Bem-estar material”. Mises sustenta que o liberalismo como uma doutrina voltada para conduta dos homens, trata apenas das coisas materiais da vida, ignorando as necessidades do homem no plano metafísico e espiritual. Mises reconhece nisto um erro da doutrina e afirma que ” o mais sério erro do liberalismo é que nada tem a oferecer às aspirações mais profundas e mais nobres do homem”. Mises acredita que o homem satisfeito com os aspectos materiais, tende a criar caminhos para a elevação interior: “O liberalismo não visa criar qualquer outra coisa, a não ser as precondições externas para o desenvolvimento da vida interior”. No segundo aspecto, aquele que trata do “Objetivo do liberalismo”, Mises explica que o liberalismo sempre trabalhou pelo bem geral e sustenta que o liberalismo foi o primeiro movimento político a almejar o bem-estar de todos. Ele assegura que: “O liberalismo se distingue do socialismo, que, de modo semelhante, declara lutar pelo bem de todos, não em razão do objetivo a que visa, mas pelos meios que escolheu para a consecução desse objetivo”. No terceiro e último aspecto, Mises discorre sobre “As raízes psicológicas do antiliberalismo”, cuja origem encontra-se no “complexo de Fourier”. Para Mises, este comportamento típico dos anticapitalistas, é uma “patologia mental” resultante do ressentimento criado pela incapacidade dos antiliberais de superar suas deficiências. Desta forma, diante do sucesso dos liberais capitalistas, eles não reconhecem a que são incompetentes em compreender a doutrina liberal, embora faça uso dela no seu cotidiano e por isso descarrega toda as suas frustrações através de verborragias socialistas culpando a tudo e a todos e  se fazendo de vítimas. Deste modo, Mises explica que a vida do anticapitalista seria insuportável sem o consolo do socialismo: “Ela [a doutrina socialista] lhe diz que não é ele [o anticapitalista], mas o mundo, que falhou por ter-lhe causado o fracasso. Esta convicção o resgata da decaída autoconfiança e o libera do tormentoso sentimento de inferioridade”. Assim, segundo Mises, o pensamento marxista está impregnado de fourierismo: “O marxismo é incapaz de construir um quadro de uma sociedade socialista, sem apresentar dois pressupostos anteriormente apresentados por Fourier que contradizem toda experiência e toda razão”. 

   No capítulo “Os fundamentos da política econômica liberal” Mises discute o que é liberalismo, suas características e qual a sua relação com o Estado, com a sociedade e com o indivíduo. Mostra os princípios sobre os quais foram construídas as doutrinas do liberalismo. Mises explica que “o liberalismo é uma doutrina voltada para o homem”, de maneira que se aplica a vida ao fundamentar a realização do homem e busca sua felicidade na liberdade e na propriedade. Ela é racional no sentido de prover o bem-estar, pois o verdadeiro objetivo do liberalismo é a paz e a felicidade do indivíduo, possível somente na ausência de um Estado interventor. Ora, o liberalismo não é a doutrina do fim do Estado, mas certamente é o caminho para a sua redução.  O Estado deve ter apenas o tamanho necessário e o suficiente para exercer as suas funções básicas que são defesa contra forças externas, manter a ordem interna e garantir os direitos e exigir os deveres do cidadão. O liberalismo não veio para extinguir o Estado, mais para reduzi-lo. 

   A Propriedade, a liberdade, a paz e a igualdade são, segundo Mises, os principais valores que fundamentam a política econômica liberal. Mises sustenta que toda civilização humana está alicerçada na divisão de trabalho e que graças a ela o homem se destacou na luta pela sobrevivência. A divisão de trabalho, baseada na cooperação humana, foi então a responsável pelo progresso da humanidade. Entretanto, a natureza dá ao homem a matéria bruta que necessita e este a transforma com a força do seu trabalho, agregando-lhe novos valores. A este processo os liberais chamam de “propriedade privada dos meios de produção”. Por isto, a propriedade privada representa o mais importante fator para o liberalismo econômico. A propriedade privada dos meios de produção não suporta excessivas regulamentações e intervenções e, como um pássaro que precisa voar para se sentir livre, é na liberdade que repousa o segundo fator importante do liberalismo. Curiosamente, Mises faz uma profunda reflexão sobre o papel da paz no liberalismo. A guerra não tem nenhum valor positivo para o pensamento liberal, mas a paz é um dos seus objetivos. Mises adverte que o homem tende a viver o máximo possível em cooperação social. Num cenário deste a guerra não pode ser uma doutrina do liberalismo pelo simples fato de que a paz traz vantagens, tanto para os fortes, quanto para os fracos. 

   Porém, quando se trata da igualdade, Mises faz rigorosas considerações sobre a crença que todos os membros da raça humana são iguais. Mises afirma: “Os homens são totalmente desiguais”. Esta é, sem dúvidas, uma afirmação que suscita muitos conflitos. Entretanto, Mises infere que esta desigualdade não se aplica a todos os aspectos da vida do indivíduo. “Todos os homens devem receber tratamento igual perante a Lei” é o que Mises acredita que este axioma leva a paz social. Cada indivíduo é dotado de certas habilidades que as distingue de outros indivíduos. Estas lhe dar um valor competitivo que lhe faz superar os demais em vários aspectos. Um indivíduo nesta condição deseja ter melhores reconhecimento pelo seu destaque em relação ao outro e espera como consequência rendimentos maiores. Neste aspecto não pode haver igualdade. 

   Em “Desigualdade de riqueza e de renda”, que é um tema tão debatido na sociedade tanto pela direita quanto pela esquerda, consiste na distribuição desigual de renda e riqueza, condenando os grupos de renda mais baixa a viver na pobreza, Mises ensina que “Os que defendem a igualdade de distribuição de renda desconsideram o ponto mais importante, a saber, que o total disponível para a distribuição, o produto anual do trabalho social, não é independente do modo pelo qual é dividido. O fato de que esse produto alcança seu nível atual não é um fenômeno natural ou tecnológico, independente de todas as condições sociais, mas é, em sua totalidade, o resultado de nossas instituições sociais” 

   Ainda neste tema, encontraremos uma sessão que é uma reflexão sobre o Estado e o governo. Nele o leitor encontrará uma das mais claras definições sobre o significado e papel do Estado. Mises assevera que “Chamamos de estado o aparelho social de compulsão e coerção que induz as pessoas a obedecerem às regras de vida em sociedade; chamamos de Lei as regras segundo as quais o estado age; e de governo, os órgãos encarregados da responsabilidade de administrar o aparelho coercitivo”. Continuando o tema Mises faz uma crítica ao pensamento que como uma falsa vertente do liberalismo dá origem aos libertários, apesar de que este último não concorda em muitos aspectos com o pensamento liberal clássico: os anarquistas. Segundo Mises, por compreender mal a natureza do homem, o anarquista acredita em certos “contos” que denotam a verdade sobre o homem e crê que o liberalismo é uma doutrina que tende a ser falsa em seus princípios. Na realidade há um grande equívoco por parte dos libertários, segundo Mises. Mises afirma que liberalismo não tem nenhuma relação de princípios com o anarquismo. O liberalismo acredita no Estado mínimo em que se prezam a propriedade, a paz e a liberdade, ao passo que o anarquismo defende a absoluta liberdade do indivíduo e coloca – se contra a qualquer sistema estabelecido que se coloque contra o interesse só indivíduo. Inclusive o anarquista defende a ideia de que o Estado é absolutamente desnecessário. 

   A questão do anarquismo tem uma relação direta com a democracia. A sociedade anarquista, não pode, por definição, ter a forma de governo democrático como um sistema aplicado na prática, dado que o anarquismo vai de encontro à liberdade, embora alegue que no seu objetivo seja tornar o indivíduo livre. Na realidade, Mises sustenta que o liberalismo não questiona a necessidade da existência do Estado e o seu tamanho e seu alcance, ao passo que o anarquista é totalmente contra a existência do Estado. Entretanto Mises estava ciente do imenso desafio que é governar sobre as asas da liberdade à luz da democracia. Mises sustentava que não é possível que todo o povo possa governar e legislar. Isto pela própria natureza do indivíduo ao buscar primeiro a sua satisfação pessoal, mas que o povo pode a partir de uma perspectiva democrática alcançar certo grau de governabilidade dentro dos princípios liberais. Quando esses interesses não são observados se cria a condição para diversos embates e resistências à ordem estabelecida podendo em muitos casos imperar a mais crua forma de anarquismo e com grandes possibilidades de levar um país a uma guerra civil. O uso dessa força é criticado por Mises no capítulo “A crítica da doutrina da força”. 

   Existe na filosofia da doutrina antidemocrática a expressão que diz, argumenta Mises, que somente os melhores podem governar e que o governo do povo, ou seja da maioria, não é viável. Entretanto, Mises alerta que a força é o único instrumento capaz de forçar uma legitimação do governo antidemocrático e que está força em algum provocará uma onda de resistência capaz de levar a uma guerra civil. Porém, Mises alerta: “Mas esse estado de coisas é incompatível com o estágio da divisão de trabalho por nós hoje alcançado. A sociedade moderna, baseada na divisão de trabalho, como de fato está, apenas se verá preservada sob uma paz duradoura” 

   Finalmente, Mises faz um interessante prognóstico sobre o liberalismo e nos chama à reflexão para os cuidados com os perigos do socialismo, mas também e principalmente, a transformação de uma doutrina de ciência para ideologias que apenas tendem a distorcer os verdadeiros objetivos do pensamento liberal. Nesta obra, ao final, o que se percebe, além do aguçado faro de Mises para dar musculatura a doutrina econômica liberal, há uma profunda preocupação com os caminhos que esta percorre e desta maneira Mises procura nos orientar a manter o correto curso na tentativa de evitar que o liberalismo se torne apenas mais uma ideologia que só funcione na teoria do mesmo jeito que ocorre com o socialismo. 

   Por tudo que aqui foi exposto, esta fantástica obra, tantas vezes reeditada, deixa um legado de pensamento políticos e econômicos que deve ser revisitado sempre para que fique entendido que o liberalismo não é apenas um conjunto de ideias que defende a propriedade privada, a liberdade individual e o livre comércio, mais uma filosofia de vida pautada na felicidade do indivíduo. Neste contexto, ela deixa de ser apenas uma questão econômica e passa a ser, de fato, um meio para a felicidade humana. Liberalismo é uma obra didática e ao mesmo tempo um livro de reflexões sobre os meios reais do indivíduo através da propriedade privada, alcançar a verdadeira felicidade. Todas estas teorias ao final demonstram que não é punhado de fórmulas matemáticas e algumas teorias que vão realizar o homem. Em toda a sua complexidade, o homem, compelido pela sua complexa natureza, sonha, imagina. Atitude deste tipo não pode ser atendida por uma economia coletivista, mas através da economia do indivíduo.