Ludwig von Mises, na década de 1950, proferiu uma série de palestras nos Estados Unidos cujo objetivo era mostrar que havia muita incoerência na dialética histórica de Karl Marx. Segundo Mises nenhum crítico do marxismo até então foi capaz de apresentar as contradições da filosofia marxista. Visando preencher essa lacuna, Mises vai criticar o marxismo e as falácias de Marx. O conteúdo dessas nove palestras foi compilado no livro O Marxismo Desmascarado, da desilusão à destruição.

     Ao prefaciar a edição brasileira da obra aqui comentada, o eminente professor Antônio Paim escreve que nos EUA o papel das ideias na era da Guerra Fria era subestimado e por conseguinte, Mises fez as suas exposições em duas frentes para expor toda incongruência continua na filosofia de Karl Marx. Paim observa que Mises percebeu a ausência de uma crítica que apontasse as falhas e incoerência na doutrina filosófica de Karl Marx. Naquela época, ainda hipnotizado pelas ideias “revolucionárias” de Karl Marx, encontravam-se presos à promessa de que o socialismo era a único caminho para a felicidade da humanidade. 

O autor entendia que, no país que a liderava do lado ocidental, os Estados Unidos, havia uma certa subestimação do papel das ideias. Assim, desenvolveu a sua exposição em duas frentes. De um lado, reuniu elementos comprobatórios da larga influência do marxismo alcançada no Ocidente e da virtual inexistência de uma crítica sistemática a esta doutrina. Do outro, analisou e refutou suas teses centrais“.

     Com efeito, acerta Antonio Paim ao apontar que “praticamente não havia nenhuma crítica sensata às doutrinas filosóficas de Karl Marx“. De maneira que Mises viria preencher essa lacuna em suas palestras alertando para os falsos postulados marxistas. Por sua vez, Richard M. Ebeling ao escrever a introdução da referida obra, demonstra quanto o Ocidente estava com a visão equivocada dos pressupostos marxistas ao sustentar que, “tanto na Europa como nos Estados Unidos, o pressuposto era de que o capitalismo, quando desregulamentado, somente levaria à exploração, à miséria e à injustiça social“. Essa era uma clara falácia do marxismo ao desenvolver ideias críticas contra o capitalismo a partir de visões equivocadas da economia.

     Mises inicia a sua série de palestras falando da filosofia e não sobre economia, avisa. A filosofia a que se refere Mises é a do marxismo. Nenhuma ideia teve maior impacto nas civilizações ocidentais e orientais que as de Karl Marx após a Revolução Industrial (1948). O comunismo, como se vê no posfácio escrito por Murray Rothbard nesta obra, não teria o alcance que teve nos últimos dois séculos se não estivesse montado sobre os ombros do marxismo. Nao obstante, Mises esclarece que, “Marx e suas ideias – ideias que não inventou, desenvolveu ou aperfeiçoou, mas que unicamente combinou para formar um sistema – são bastante aceitas hoje, até mesmo por muitos dos que enfaticamente declaram-se anticomunistas e antimarxistas”. Como se vê, o marxismo é o ópio dos intelectuais, como afirmara Raymund Aron. O seu domínio domínio expansão no século XX é notável. Há então um claro predominância do marxismo sobre a mente de uma boa parcela dos bem pensantes. 

A Mente, o Materialismo e o Destino do Homem

     A dialética marxista e o seu materialismo histórico se tornou a filosofia que levaria o homem a realizar o papel de deus na reconstrução do próprio homem e da humanidade como se Deus fosse. No capítulo A Mente, o Materialismo e o Destino do Homem, Mises busca explicar como Marx construiu o arcabouço da sua filosofia a partir do materialismo. Marx via tudo da perspectiva do fluxo da história e do materialismo dos quais ressaltava a relação entre os meios de produção capitalista e o interesses de classes.

     Para entender Marx, Mises explica que há dois tipos de materialismo, um ético e um filosófico e que é necessário compreender a distinção que se apresenta. O ético refere-se ao apego exagerado do homem às  coisas do mundo físico. O segundo, o filosófico, propõe solucionar a relação entre a mente ou alma humana, por um lado, e o corpo humano e suas funções fisiológicas, por outro.

     Para Marx as forças produtivas da história eram a base de tudo e estas determinam as relações de produção e daí a exploração dos proletariados pelos donos do capital. Para Mises “Marx desenvolveu o que considerava ser um sistema novo. Segundo sua interpretação materialista da história, as “forças produtivas materiais” (esta é a tradução literal do alemão) constituíam as bases de tudo. Cada estágio das forças produtivas materiais corresponde a um estágio definido das relações de produção. As forças produtivas materiais determinam as relações de produção, ou seja, o tipo de propriedade que existe no mundo. E as relações de produção, por sua vez, determinam a superestrutura. Na terminologia de Marx, o capitalismo ou o feudalismo constituem relações de produção. Cada um deles necessariamente causado por um estágio específico das forças produtivas materiais”.

     Como Marx via tudo da perspectiva de relação de produção e interesse de classe, Mises assevera que o conceito de interesse era fundamental para as teorias de classes de Marx. Segundo essa visão, devido às forças de produção, todos nós pensamos em termos de interesses de classes, visão que não se confunde com o das ideias. Mises escreve, “segundo Marx, todos somos forçados – pelas forças produtivas materiais – a pensar de tal maneira que o resultado revele nossos interesses de classes. Pensamos como nossos “interesses” nos forçam a pensar, segundo os nossos “interesses de classe”. Os “interesses” independem de nossa mente e de nossos ideais – existem em um mundo separado das nossas ideias. Por conseguinte, a produção de nossas ideias não é verdadeira. Antes de Karl Marx, a noção de “verdade” não tinha qualquer significado para todo o período histórico. O que era produzido pelo pensamento humano no passado, era sempre “ideologia”, não verdade“.

     Para Mises a influência desse conceito de interesse é enorme. Sendo os interesses de classes independentes das ideias dos homens, que os força a pensar e agir de forma definida. Desta maneira o indivíduo não tem representatividade na filosofia de Marx, dado que há apenas interesses que satisfaçam o coletivo. Para Marx o indivíduo não tem valor se ele não pertencer a classe. Entretanto, embora sejam duas as classes abordadas por Marx em sua filosofia, a burguesa e a proletária, estas tem papéis e objetivos bem diferentes. Apenas para a classe dos proletários é prometido o paraíso aqui na terra.

Luta de Classe e o Socialismo Revolucionário

     O instrumento de luta preconizado pela filosofia de Marx é a luta de classe pela violência. Através dela e por ela o proletariado se vingará dos seus empregadores. Derrotará o capitalista tomando de volta o que este usurpou do proletariado. A luta de classe é a espada do socialismo revolucionário. Para Marx, ao final dessa batalha só haveria um vencedor e seria os proletários, ou seja, aqueles  que destruirão a classe dominadora para se tornar a classe dominante. Para Mises o conceito de classe que Marx desenvolveu diverge da realidade e foi adequado à sua filosofia. No capítulo Luta de Classe e o Socialismo Revolucionário Mises escreve:

A questão não é se as classes sociais existem no sentido dos conceitos de Karl Marx, mas sim se podemos usar o conceito de “classes sociais” no sentido que Marx lhes atribui. Não, não podemos”.

     Mises acredita que Marx “não compreendeu que o problema dos interesses de um indivíduo ou de uma classe não pode ser resolvido simplesmente por referirmos ao fato de existir tal interesse e de os homens deverem agir segundo os próprios interesses“. Para Mises, a ideia de interesses de classes, de acordo a ótica de Marx, não diz a que fins tais “interesses” levam as pessoas, assim como não mostra quais métodos as pessoas pretendem usar para atingir tais fins. Na verdade, há um conflito entre o que Marx pensa em sua dialética de classe e os verdadeiros interesses dos proletários quando isso é levado para o interior dos sindicatos. Segundo Mises há conflitos de opiniões entre os proletários sobre o método adequado para ação, pois para Marx, os sindicatos deveriam abandonar a política conservadora e adotar uma posição mais revolucionária, mais de luta e nao de reivindicação para a imediata satisfação das suas necessidades. A isso Mises escreve:

“Vemos aqui um óbvio conflito de opiniões entre os proletários sobre os métodos de ação adequados. Os sindicatos proletários e Karl Marx discordavam sobre o que era ou não “interesse” dos proletários. Marx declarou que os “interesses” de uma classe eram óbvios – não poderia haver qualquer dúvida sobre eles – todos deveriam conhecê-los. Então, aparece alguém que não pertence ao proletariado, um escritor e advogado que diz que os sindicatos estão errados. “Essa política é inadequada”, disse. “Vocês devem mudar radicalmente tal política””. 

     Logo Mises observa que o conceito que Marx postula da infalibilidade da classe contra a insignificância do indivíduo desaba. Coisas desse tipo levam a Mises a afirmar, “as críticas às doutrinas marxistas sempre foram superficiais, pois jamais salientaram como Karl Marx se contradisse e como não conseguiu explicar suas ideias. Eugen Böhm-Bawerk ofereceu uma boa crítica, mas não cobriu todo o sistema. Críticos de Marx nem mesmo chegaram a descobrir as contradições mais evidentes de Marx“.

São muitas as contradições do marxismo apontadas por Mises. Uma notória contradição diz respeito à Lei de Ferro dos Salários, aquela que afirma que quando o valor do salário é superior ao valor da necessidade do trabalhador haverá uma redução do salário e o seu inverso provocará a escassez de mão de obra. Mises refuta o marxismo ao declarar que Marx não entendia absolutamente nada sobre as reais necessidades das massas. Suas conjecturas eram fantasiosas, utópicas e incapazes de ter algum nexo com a realidade do proletariado, cego pelo seu ódio ao capitalismo. 

Há uma contradição insolúvel entre o conceito marxista da lei de ferro dos salários, segundo a qual os salários permanecerão em um patamar tal que seja suficiente para sustentar a progênie de trabalhadores, até que eles mesmos possam se tornar trabalhadores, e sua filosofia da história, que afirma que os trabalhadores empobrecerão cada vez mais até se rebelarem e assim, causarem o advento do socialismo“.

     Em O Marxismo Desmascarado Mises apontou algumas das contradições sobre a luta de classes. Enfatizou que o objetivo de Marx não poderia ser alcançado como oposição aos interesses dos sindicalistas, bem como demonstrou que as políticas de salário da época, como a Lei de Ferro dos Salários é uma falácia e que não encontra eco no capitalismo devido às suas incongruências em termos de  cálculo econômico. Mas ainda, Mises crítica Epistemologicamente as teses de Marx ao depreender, “Karl Marx raciocinou a partir da tese em direção à negação da tese e a seguir, à negação da negação. A propriedade privada dos meios de produção nas mãos de cada trabalhador individual era o ponto de início do raciocínio, a tese. Esse era o estado de coisas em uma sociedade em que cada trabalhador era agricultor ou artesão independente e possuía as ferramentas com as quais trabalhava. A negação da tese – propriedade no sistema capitalista – seria quando as ferramentas não eram propriedade dos trabalhadores, mas sim dos capitalistas. A negação da negação seria a propriedade dos meios de produção nas mãos de toda a sociedade. Seguindo esta linha de raciocínio, Marx declarou ter descoberto a lei da evolução histórica. Por isso denominou essa teoria de socialismo científico“.

O Individualismo e a Revolução Industrial

     No sistema marxista o indivíduo, enquanto revolucionário, não tem valor algum. Ele é apenas um tijolo da grande edificação revolucionária e como indivíduo não representa os interesses revolucionários, portanto nada significa em termos valorativos para a classe. Neste contexto, o indivíduo é apenas uma peça para dar corpo ao coletivismo. Somente a classe do proletariado tem importância e por ela toda a energia do marxismo perpassa. Para Marx o indivíduo não opina, só a classe pensa e decide porque ela é a vontade de todos, o povo. Aquele que pensa diferente é inimigo do povo segundo a filosofia marxista-leninista. Mises analisa dois aspectos basilares do sistema marxista: O Individualismo e a Revolução Industrial. Mises observa que essa ideia foi bastante difundida entre Marx e os marxistas:

Não é o indivíduo que pensa – é a nação ou uma entidade social que usa o indivíduo somente para a expressão de seus próprios pensamentos”.

     Para Marx a evolução histórica ocorre apenas em função das forças produtivas. Os indivíduos têm a missão de ser as correntes pelas quais a ideologia marxista e a vontade da classe dos proletariados fluem. Para Marx o processo histórico tem vontade própria e segue o seu caminho inexoravelmente. Vale lembrar que para Marx o processo histórico é formado pela própria luta de classe contra o capitalista. Neste sentido, Mises afirma, “Marx e Engels negavam que o indivíduo tivesse qualquer papel na evolução histórica, pois a história segue seus próprios passos. As forças produtivas materiais seguem o próprio caminho e se desenvolvem independentemente da vontade dos indivíduos”.

     Considerando que o liberalismo, sistema de pensamento que preconiza a liberdade do indivíduo, é diametralmente oposto ao coletivismo marxista é de se esperar que haja um antagonismo entre essas duas correntes de pensamento. E de fato há. Para Marx qualquer ideia de movimento liberal é contra os objetivos da classe, principalmente pelo risco do indivíduo sair por aí espalhando-se ideias próprias. Apregoa Mises assim a essa linha de pensamento:

“Marx interpretava as mudanças liberais como tentativas de redimir o explorador da responsabilidade sobre as vidas dos trabalhadores. Marx não compreendia que o movimento liberal visava à abolição das desigualdades sob a lei, como a desigualdade entre o servo e o senhor“.

     Deveras, entre empregadores e empregados existe uma relação de interesses, não necessariamente conflitantes como assegura Marx. A relação entre o empregado e o patrão é uma relação de trocas baseada na livre escolha. O empregado terá sempre a sua disposição fazer ou não o negócio, de maneira que se não lhe é interessante, o negócio não se concretiza. O fato é que a relação não é de exploração e sim contrato de negócios e ambos tem interesse em comum, por isso a relação de ganha-ganha é notória nas atuais relações trabalhistas entre patrão e empregado. Na época de Marx as relações de trabalho e, sobretudo, as condições eram bem diferentes das de hoje. Porém, a ideia que nasceu na primeira metade do século XIX se perpetua sem querer se dar conta que mesmo na época de Marx já havia mudanças que levaram a melhor relação entre patrão e empregado. Havia os sindicatos, uma força a favor do empregado. Ao contrário do que pensava Marx, a Revolução Industrial não é um instrumento de exploração, mas a causa da melhoria das condições globais da população dos países industrializados, e por conseguinte uma melhora global em todas as nações. A prova disso é que Lenin e Stalin acreditavam que a tecnologia era libertadora. Mises observa que “para Marx, toda a Revolução Industrial simplesmente consistiu da exploração dos trabalhadores pelos capitalistas. Segundo ele, a situação dos trabalhadores só piorou com a chegada do capitalismo“.

Donde Mises infere que,

“Segundo Marx, o capitalismo é um estágio necessário e inevitável na história da humanidade que transporta os homens de suas condições primitivas ao milênio do socialismo. Entretanto, se o capitalismo é um passo necessário e inevitável na estrada para o socialismo, não se poderia argumentar de modo consistente, sob a perspectiva de Marx, que aquilo que o capitalista faz seja ética ou moralmente ruim. Sendo assim, por que Marx atacava os capitalistas?”

Para Mises,

O que Karl Marx denominou “a grande catástrofe da Revolução Industrial” não foi de modo algum uma catástrofe, pois trouxe grandes melhorias nas condições de vida das pessoas[…] Marx acreditava que medidas intervencionistas não eram adequadas, pois atrasariam a vinda do socialismo. Os sindicatos trabalhistas recomendavam intervenções, Marx se opunha a eles“.

       Na verdade, como Mises demonstrou que o sistema marxista é utópico e contraditório. O próprio Marx em diversas etapas dos seus estudos teve que rever suas ideias. Mises sinaliza que, “Karl Marx, na segunda parte de sua carreira, não era um intervencionista, pois partilhava da filosofia do laissez-faire”.

e aponta que na verdade o marxismo é um sistema confuso e que suas teorias não se sustentam. O sucesso da estratégia marxista é impossível sem o controle estatal e somente ao Estado traz algum benefício, motivo do seu sucesso entre os burocratas estatais. Porém, o que se vê na prática, é que na verdade não funciona nem mesmo com a intervenção do Estado. Vimos isso na URSS, na China e em outros países em que o comunismo fracassou fragorosamente.