Norberto Bobbio (1904-2004) foi um dos maiores pensadores políticos do século XX e deu importantes contribuições ao direito com a sua Teoria Geral do Direito e tantas outras obras voltadas para o direito. Entre 1984 e 1985 escreveu o livro “Estado Governo Sociedade – Para uma teoria geral da política ” um clássico da Teoria Geral do Estado. Neste ensaio Bobbio investiga e busca o entendimento das várias ideias que ao longo da história formaram o Estado e todos os seus intrincados mecanismos Para Bobbio,  Estado, governo e sociedade carecem de base teórica que dê sentido à existência de relacionamento entre estas três noções políticas. Assim, ao examinar esses aspectos chaves da política, Bobbio busca construir uma teoria geral da política que explique as relações de causa e efeito entre estes elementos, inclusive tentando construir uma visão menos kelseniana, focando nos aspectos mais humanitários do direito.

   Para Bobbio, a construção de uma teoria política tem um conceito basilar que delimita, representa e ordena o próprio  campo da investigação das disciplinas jurídicas,  sociais e históricas, entre outras. Bobbio denomina este conceito de a grande dicotomia público / privado. Bobbio explica que deriva da dicotomia entre o que é público e o que é privado aquilo que ele chama de distinção. A priori Bobbio vê três distinções que importam para uma investigação: A sociedade de iguais e desiguais, Lei e Contrato e, a justiça distributiva e a justiça comutativa. 

   Ele esclarece que numa sociedade a relação entre seus princípios e valores, Estado e  povo, fundam-se sobre a noção de sociedade de iguais e a sociedade de desiguais. Bobbio escreveu que “onde então se deve notar que a linha de separação entre estado de natureza, esfera econômica, sociedade civil, de um lado, e estado civil, esfera política,  estado político, de outro, passa sempre entre sociedade de iguais e sociedade de desiguais“, desta maneira Bobbio descreve que esta distinção repousa sobre as esferas política a qual ele relaciona com a desigualdade, e a econômica que ele relaciona com igualdade, ou ainda, como uma distinção entre a sociedade política e a sociedade econômica.

   Na segunda distinção, Bobbio mostra que a relevância histórica do direito público e do direito privado como meios formativos de outra dupla dicotômica recai sobre duas outras noções, a saber: Lei e Contrato. Bobbio sustenta que o critério de distinção entre o direito público e direito privado é o “diverso modo com qual um e outro passam a  existir enquanto conjunto de regras vinculatórias da conduta”. Explica Bobbio que o direito público se estabelece a partir do poder exercido pelo Estado sob a forma de coação,  ou seja, da Lei. Por outro lado, o do direito privado, é o poder exercido pelo Estado e se estabelece através de um contrato que vincula os interesses comuns e recíprocos. A respeito deste último, esclarece: “O direito privado é um conjunto das normas que os singulares estabelecem para regular as suas recíprocas relações mediante acordos bilaterais, cuja força vinculatória repousa sobre o princípio da reciprocidade. A superposição das duas dicotomias privado e público e, contrato e lei revela toda a sua força explicativa na doutrina moderna do direito natural, pela qual contrato é a forma típica dos indivíduos singulares regular suas relações no estado de natureza, Isto é, no estado que ainda não existe o poder público, enquanto a lei, definida atualmente como a expressão mais alta do Poder soberano, é a forma com a qual são reguladas as relações entre si, e entre o estado e o súdito, na sociedade civil, Isto é, aquela sociedade que é mantida junta por uma autoridade superior aos indivíduos singulares”.

   A terceira distinção diz respeito às duas formas clássicas da justiça, a saber, a justiça distributiva e a justiça comutativa. Bobbio explica que a justiça comutativa é  aquela que preside às  trocas que ocorrem entre as partes interessadas. “Sua pretensão fundamental é que as duas coisas que se trocam sejam,  para que a troca por ser considerada justa, de igual valor, donde num contrato comercial é justo o preço que corresponde ao valor da coisa comprada, no contrato de trabalho é justa remuneração que corresponde a qualidade ou à  qualidade ou a quantidade  do trabalho realizado,  no direito civil é justa a indenização que corresponde a dimensão do dano, no direito penal a justa pena é aquela na qual existe correspondência entre o malum actionis e o malum passionis”. Por outro lado vem a justiça distributiva exercida pelo poder público quando distribui honras e obrigações. Bobbio argumenta que “sua pretensão é que a cada um seja dado que lhe cabe com base em critérios que podem mudar segundo a diversidade das situações objetivas, os segundos pontos de vista os critérios mais comuns são a cada um segundo médico a cada um segundo a necessidade a cada um segundo trabalho”. 

   Sob a égide do direito público e o direito privado Bobbio verifica que com base na propriedade em Locke e Hobbes o direito privado da família, da propriedade, do contrato e dos testamentos,  aplicam-se, em certa medida, superior ao público, tendo como origem seu primado do direito privado, na difusão e da recepção do direito romano no Ocidente. Quanto ao direito público, Bobbio esclarece que como corpo sistemático de direito de normas, nasce muito tarde com respeito ao direito privado, apenas na época da formação do estado moderno, lá pelo século XIV. Assim Bobbio escreveu que um dos eventos que melhor demonstra a dicotomia entre estas duas vertentes do direito que qualquer outro é a persistência do primado do direito privado sobre o direito público  “é resistência que o direito de propriedade expõe a ingerência do poder soberano e, portanto, ao direito por parte do soberano e expropriar (por motivo de utilidade pública) os bens do súdito”.

   Bobbio vê como normal o processo de privatizar empresa pública e ou estatizar empresa privadas desde que submetida ao interesses da coletividade, pois para ele o Estado pode ser o lugar de conflito onde se desenvolve, se  compõem para se decompor e recompor “através do instrumento jurídico de um acordo continuamente renovado representação moderna da tradicional figura do contrato social”. Neste sentido Bobbio argumenta que “os dois processos publicização do privado e privatização do público não são de fatos incompatíveis e realmente compenetram-se um no outro. O primeiro reflete o processo de subordinação dos interesses do privado aos interesses da coletividade, representada pelo Estado que invade e engloba progressivamente a sociedade civil, o segundo representa a revanche dos interesses privados através da formação dos grandes grupos que se servem dos aparatos públicos para o alcance dos próprios objetivos 

    Bobbio fecha este capítulo com a seguinte conclusão: Resta que tal de dicotomia, tanto no sentido de coletivo / individual quanto no sentido de manifesto / secreto, constitui uma das categorias fundamentais e tradicionais, mesmo com a mudança dos significados, para representação conceitual, para a compreensão histórica e para enunciação de juízos de valor no vasto campo percorrido pelas teorias da sociedade e do Estado”.

    Na grande dicotomia sociedade civil / Estado a análise de Bobbio mostra que a sociedade é o lugar de conflitos onde se situa a função do Estado como mediador ou repressor. Ele observa que sociedade civil é “o lugar onde surgem e se desenvolvem os conflitos econômicos, sociais, ideológicos e religiosos que as instituições estatais têm o dever de resolver, ou através da mediação ou através da repressão”. A sociedade civil no concepção de Bobbio pode ser definida como o conjunto dos aparatos que no sistema social organizado exercem o poder coativo caracterizada por relações sociais sem regulamentação do Estado. Bobbio mostrará que estes conflitos têm profundas raízes no pensamento marxista e hegeliano que pesa sobre a sociedade civil. Desta visão Bobbio extrai as várias acepções da sociedade civil em suas vertentes mais significativas. A sociedade civil marxista, afirma, é compreendida como uma superestrutura que conduz a duas acepções. Bobbio escreveu que uma a sociedade civil adquire uma conotação axiologicamente positiva e passa a indicar local onde se manifesta todas as instâncias de modificações das relações de dominação, formando-se grupo que lutam pela situação do poder político que adquire força nos assim chamado contra poderes, de um lado, e pode também dar uma conotação axiologicamente negativa, por outro, desde que nos colocam do ponto de vista do Estado e consideremos os fermentos de renovação de que é portadora sociedade civil como germe de desagregação. Ele também define uma terceira opção para a sociedade civil que tem um significado ao mesmo tempo cronológico segundo ele como na primeira e axiológicos como na segunda que representa o ideal de uma sociedade sem Estado destinada a surgir da dissolução do poder, uma ideia que brota das doutrinas de Gramsci.

   O estado e o indivíduo passam a se alimentar de ideias, segundo explica Bobbio, que dá origem ao indivíduo burguês. Algumas dessas ideias para Bobbio são: “afirmação de direitos naturais que pertencem aos indivíduos e aos grupos sociais independentemente do estado que como tais limita e restringe a esfera do poder político; a descoberta de uma esfera de relações interindividuais como são as relações econômicas para cuja regulamentação não se faz necessária a existência de um poder coativo posto que se autorregulam; a ideia de que a sociedade é criada por nossas necessidades e o Estado por nossa maldade parafraseando Thomas Paine”.

   Então qual seria a definição mais exata da sociedade civil? Bobbio esclarece que há dois tipos de definições para a sociedade civil: a positiva e a negativa. A definição positiva para a sociedade civil, segundo Bobbio, pode-se dizer que a sociedade civil é o lugar onde surgem e se desenvolvem os conflitos econômicos sociais, ideológicos e religiosos e que quando existem conflitos as estatais têm o dever de resolver, ou através da mediação ou através da repressão. Bob argumenta que a sociedade civil neste caso será composta por sujeitos desse conflito importante da sociedade civil exatamente contra o Estado. Este é composto por estruturas civis que são as classes sociais, os movimentos sociais, as associações e organizações que representam e se declaram seus representantes, do mesmo modo também inclui nessa estrutura os partidos embora ele venha afirmar que partidos tem um pé na sociedade civil e o pé nas instituições.

   Bobbio sustenta que uma sociedade torna-se tanto mais ingovernável quanto mais aumenta as demandas da sociedade civil e não aumenta correspondentemente a capacidade das instituições de elas responderem ou melhorarem a sua capacidade de resposta do Estado, alcançando limites talvez não mais superáveis. Para ele, a ingovernabilidade gera crise de legitimidade. 

   A sociedade civil representa o lugar onde se formam, especialmente nos períodos de crise institucional, os poderes de fato que tendem a obter uma legitimação própria inclusive em detrimento dos poderes legítimos, sustenta Bobbio. Da qual segundo ele deve-se incluir o fenômeno da opinião pública. O que é entendida como a pública expressão de consenso e dissenso com respeito às instituições transmitidas através da imprensa, do rádio e da televisão, de resto a opinião pública e movimentos sociais procedem lado a lado e se condicionam reciprocamente, explica Bobbio.  Assim ele argumenta que se a opinião pública, a própria sociedade civil, estão fadados ao desaparecimento. 

   Para Bobbio o significado predominante da sociedade política ou estado usado em diversos contextos conforme a sociedade civil e política tenham sido diferenciados da sociedade doméstica da cidade natural das sociedades religiosas. Bob explica que no debate atual a contraposição permanece e que a ideia de que a sociedade civil é o anfiteatro do Estado entrou de tal maneira na prática cotidiana que é preciso fazer um grande esforço para se convencer de que durante séculos a mesma expressão foi usada para designar aquele conjunto de instituições e de normas que hoje constituem exatamente o que se chama de Estado e que ninguém poderia mais chamar de sociedade civil sem correr o risco de um completo mal entendido. Entretanto, ele sustenta que poder e direito são chaves para a definição da forma de governo e Estado. 

   Neste sentido, Bobbio argumenta que qualquer que seja o estudo que se pretenda fazer para se chegar a uma teoria política, este passa antes pelo direito público e privado para estabelecer as suas bases de consenso teóricos e práticos.