A Covid-19 e as ações do Governo

A pandemia da Covid-19 (infecção pelo vírus Coronavírus – Sars-CoV-2) está dizimando milhões de pessoas em todo o mundo. Absolutamente, isto faz deste fato o maior evento do século XXI com profundo impacto na economia mundial. A infecção pelo Coronavírus (Covid-19) começou  em novembro de 2019 em Wuhan, na China, e se estende até o presente momento, portanto são 18 meses que o mundo trava uma terrível batalha contra um inimigo minúsculo e poderoso. Neste contexto faremos uma investigação acerca dos limites da ação dos governos na obra Os Limites da Ação do Estado de Wilhelm von Humboldt.

Por conseguinte, além do dos imensos problemas econômicos, em âmbitos gerais, fala-se em mudanças na vida política, social e econômica em escalas globais. Há  muitos nomes para o fenômeno: “novo reset”, “novo normal”… Dito de outra forma, se acredita que o mundo não será mais o mesmo após a pandemia da Covid-19.

Alarmismo à parte, em alguns segmentos da sociedade, a Covid-19 veio para derrubar certos paradigmas. Neste sentido, no âmbito da política, destaca-se a questão da intervenção do governo na economia. Como medida de contenção do avanço do Coronavírus, os governos tiveram que, primeiro, injetar bilhões de dólares para atender a crescente demanda na área de saúde, e segundo, fechar importantes setores da economia como o de comércio e serviços, o chamado lockdown. O resultado é que estas duas grandes medidas afundaram o mundo numa crise financeira sem precedentes. Contudo, o que aconteceria com as empresas e as pessoas, sobretudo para a faixa da população que vive na pobreza e tem o mercado informal como o único meio de sobrevivência se não tivessem auxílio do governo?

O lockdown obrigatório fechou  o comércio, paralisou a indústria  e parou os serviços. Milhares de médias e pequenas empresas fecharam as portas e outras milhões acumulam prejuízos altíssimos. Os governos por sua vez, diante deste imenso  desafio saíram em socorro a população e as empresas através de auxílios financeiros e benefícios fiscais, assim como movimentaram bilhões de dólares se estruturando para combate à disseminação do vírus e imunização da população.  Assim sendo quem em em sã consciência faria critica a intervenção do Estado em situações como esta?

Com efeito, seria quase um consenso geral que em situação semelhante é necessário intervir pois as micros e as médias empresas não dispõem de reservas para tanto tempo de economia parada. Do mesmo modo, nestas condições, a crise econômica mundial não deve encontrar barreiras ideológicas ou teóricas a respeito da intervenção do Estado na economia. Fato é que sem o auxílio dos governos o impacto negativo na economia causado pelo Coronavírus seria muito maior e de consequências imprevisíveis.  

Sendo assim este é o momento propício para uma investigação teórica  acerca dos limites da ação do Estado. O cenário atual nos fornece elementos que nos permitem uma análise mais acurada sobre os fenômenos econômicos por parte dos governos, como disponibilidade de recursos financeiros; desenvolvimento de vacinas; logísticas de distribuição da vacina e, principalmente, a criação de um ambiente para a corrupção política.  Neste aspecto, convém lembrar certas atitudes de governadores e prefeitos frente ao combate a Covid-19 no Brasil. Em suma, perguntamos: diante da crise na saúde e na economia causada pela pandemia do coronavírus qual é o limite da ação do Estado? Para refletir sobre os limites da ação do Estado faremos uma análise sobre a obra Os Limites da Ação do Estado do linguista e filósofo alemão Wilhelm von Humboldt (1767―1835), pois o pensamento de Humboldt sobre a intervenção do governo não se restringe a economia, mas a uma ampla reflexão teórica sobre papel do Estado.

De Mises a Humboldt

Ludwig von Mises(1881―1973), um dos maiores nomes do liberalismo econômico do século XX, afirmava em seu magistral tratado As Seis Lições que o Estado tem o dever de proteger as pessoas dentro do país contra investidas violentas e fraudulentas de bandidos, ou seja, neste princípio Mises mostra que num sistema de economia de mercado há situações em que o governo precisa intervir. Do mesmo modo, ele esclarece que essa deve ser a atitude do governo em tempo de guerra e calamidades públicas (como a pandemia da Covid-19). Aqui, o pensamento do renomado autor parece coadunar com os fatos. Se o governo não interferir numa situação pandêmica, por exemplo, haverá o caos econômico e por conseguinte altíssima instabilidade social e tudo o mais que pode decorrer de possíveis recessões econômicas. 

Vale ressaltar que Mises é um crítico do intervencionismo (ver o seu livro Uma Crítica ao Intervencionismo). Mises argumenta que a gestão da economia e o controle da vida das pessoas não devem ser atribuições do Governo. Para Mises o governo deve ser um fomentador e nunca um controlador da economia. Ele deve criar as condições para estimular a economia e nunca usar o poder político para intervir nos mecanismos naturais da economia de mercado, ou pior, impor uma economia planificada socialista. Ao agir sem freios o governo extrapola os seus deveres e obrigações. Para Mises o intervencionismo é o caminho mais curto para o totalitarismo conforme se viu no início do século XX entre os países do bloco socialistas.

Já para Murray Rothbard(1926―1995), outro famoso economista da Escola Austríaca,  em seu livro Anatomia do Estado, o Estado ideal é aquele que deixa que o mercado econômico siga as suas próprias regras sem nenhuma interferência do governo, pois sempre que houver crises econômicas o próprio sistema se reorganiza e pune a ganância e restabelece o equilíbrio.

Entretanto, diferente de Mises, Rothbard acreditava que o Estado é uma instituição desnecessária em todos os aspectos imagináveis. Escreve Rothbard em sua obra aqui citada: o Estado nunca foi criado por um contrato social; ele sempre nasceu da conquista e da exploração. Para Rothbard a relação entre o Estado e o indivíduo sempre foi o primeiro explorando o segundo, portanto, o Contrato Social é unilateral e beneficia apenas o próprio Estado. De certa forma, Mises e Rothbard defendem menos Estado e mais liberdade econômica, sendo que este último, de maneira mais radical, propõe o Estado zero, ou seja, ausência total da abstração chamada Estado. 

No outro lado do espectro das teorias econômica e totalmente a favor do intervencionismo temos os princípios de John Maynard Keynes(1883―1946) que foram capazes de (uma vez aplicados após a grande depressão econômica de 1929) restaurar positivamente a economia dos EUA comprovando que a sua Escola estava certa. Na época, este fato econômico catapultou Keynes ao status de estrela da economia. Keynes defendia o intervencionismo como o meio mais eficaz para acelerar o crescimento econômico e melhorar as condições de vida da população — e conseguiu isso durante décadas, rivalizando diretamente com a Escola Austríaca. Entre altos e baixos na disputa pela hegemonia das teorias econômicas, se hoje vivo, Keynes estaria mais uma vez sendo reverenciado.

Porém há outros estudiosos que se lançaram sobre as questões dos limites da ação do Estado com uma visão mais ampla sobre as ações do Estado na vida privada. Uma dessas personalidades foi Wilhelm von Humboldt em seus ensaios intitulado Os Limites da Ação do Estado.

As investigações de Humboldt acerca dos limites de atuação do Estado.

Como reflexão vale citar a frase do Bastiat quando diz “o Estado é a grande ficção  através da qual todo  mundo se esforça para viver à custa de todo mundo” pois ela tem o tom e cor daquilo que o Humboldt defende. Em 1852 Wilhelm von Humboldt escreveu Os Limites da Ação do Estado, um tratado sobre os limites de ação do Estado e suas prerrogativas. Em suas reflexões Humboldt vai investigar sobre dois conceitos antagônicos: a ideia de bem-estar positivo do cidadão versus o bem-estar negativo do cidadão.  O primeiro caso pode ser entendido como tudo aquilo que o Estado faz pelo cidadão que parece lhe fazer bem, enquanto o segundo caso refere-se a certeza que a intervenção do governo no privado é sempre nociva. Diante disso, ele analisa liberdade individual, segurança nacional, educação nacional, religião, moralidade, leis entre outros temas da sociedade da sua época.

Em sua obra Humboldt afirma que “qualquer interferência do Estado em assuntos particulares em que ocorra qualquer violência aos direitos individuais deveria ser absolutamente condenada”. Para o consagrado autor a liberdade e respeito aos direitos individuais são princípios básicos que devem nortear um Contrato Social. Isto porque para Humboldt o maior objetivo do Estado é a felicidade do seu povo. Portanto, não se trata de protecionismo, mas de criar as condições para que o povo tenha condições de viver de forma justa. Neste sentido, felicidade aqui é identificada no seu significado mais amplo, em outras palavras, aquilo que os alemães chamam de volksgeist (espírito do povo) ― termo cunhado pelo grande jurista alemão Savigny(1779―1861) que significa restauração dos direitos do povo através de uma consciência cultural e histórica comum. 

Humboldt chega a afirmar em sua obra que “um Estado possui duas metas em vista: ele procura ou promove a felicidade ou simplesmente previne os males; no último caso, os males que advêm de causas naturais ou aqueles que derivam do próprio homem. Veja que na segunda meta dentro do pensamento de Humboldt os males de causas naturais eram vistos pelo grande linguístico como uma obrigação do governo. Sendo assim Humboldt é taxativo ao inferir que “à  medida que cada cidadão se entrega à ajuda diligente do Estado, ele estará igualmente abandonando a esse último o destino de seus compatriotas

Consequentemente, quando o Estado assim age ele cria uma ruptura na relação  entre o Estado e o indivíduo de tal maneira que o indivíduo não passa apenas parte da sua necessidade de segurança para o Estado, mas toda a responsabilidade que deveria caber ao cidadão e não ao Estado, criando uma espécie de Servidão conforme explicita Mises (O Caminho da Servidão) e Étienne de La Boétie (1530-1563) (Discurso da Servidão Voluntária). Neste âmbito, a própria família do indivíduo passa a ser responsabilidade do Estado com total anuência desta permitindo que o Estado controle a família e a propriedade destruindo a liberdade do indivíduo. Humboldt descreve em sua obra que “sempre que o cidadão se torna indiferente aos seus semelhantes, assim atuará o homem em relação à sua mulher, e o de família em relação aos membros do seu seu lar”. De fato, vemos isso nos dias atuais, sobretudo nos países  subdesenvolvidos, em que as pessoas em todas as classes sociais “vendem sua liberdade” em troca de benefícios que os tornam mais servis ao Estado. 

Parâmetros para a Educação Nacional segundo Humboldt

Acreditamos que quando o Estado tenta subjugar o seu povo, espoliando-o, há duas formas altamente eficazes de realizar tal empresa: ou deixando o povo na absoluta ignorância ou tomando o controle da educação pelos mais diversos meios. No primeiro caso, movido pelo sentimento de justiça, o povo se rebela pois só há um culpado por tal condição de penúria em que o povo se encontra: o Estado ― este não tendo a quem culpar, pois é senhor de todas as “verdades”, está  diretamente submetido ao julgamento do povo. 

Neste caso, as evidências da exploração são tão óbvias que o menos instruídos do cidadão  se insurge contra o governo. No segundo caso, o Estado se utiliza de sutis estratégias para trabalhar ainda na infância a mente daqueles que serão servis ao Estado para o resto das suas vidas. Em outras palavras, através da educação o governo não só assume toda a responsabilidade em educar as crianças e jovens adultos no lugar da família como busca aplicar métodos educacionais criados para preparar o indivíduo que não terá outra alternativa que não seja aceitar o sistema que lhe for imposto, vez que ele não terá meios para por si próprio julgar a realidade que o cerca. Este indivíduo viverá sempre a ilusão de que tudo o que o governo faz visa o benefício dele e não  seu contrário. Portanto, a sua visão do mundo será aquela determinada pelo Estado.

Assim, nesta condição transforma-se toda a sociedade sem a consciência desta do que de fato está acontecendo ao seu redor. Neste sentido, quando o governo assume toda a responsabilidade na educação da população ele está tirando a liberdade de pensamento do indivíduo pois não conhecerá outra que aquela imposta pelo Estado. Vejamos o que pensa Humboldt a respeito.

Neste tema, como se vê em seu postulado mais abaixo, Humboldt não é impositivo no que tange o controle estatal da educação. Para Humboldt, a única explicação para a necessidade do controle estatal da educação reside na necessidade que o governo, sob seus pretextos, busca dar ao indivíduo uma “educação de caráter   cívico: “se a educação tiver por objetivo tão somente formar as faculdades do homem, sem a preocupação de investir os homens de qualquer caráter cívico específico, não há razão para a interferência do Estado”. Seria então justificável a interferência do governo na Educação Nacional quando o objetivo fosse a formação do cidadão? Humboldt não responde a esta questão e prefere mergulhar na investigação acerca  da liberdade de pensamento em contraponto à liberdade religiosa como veremos a seguir.

Religião, o governo deve interferir?

Embora boa parte do mundo a laicidade seja uma regra, exceção para países alguns do Oriente Médio, na prática não é  bem assim. Se por um lado o Estado não  interfere mais em assuntos religiosos como o fazia no passado (parafraseando Bastiat ― é  o que se vê) a verdade é que há  muito tempo que a religião é  desconstruída para que no seu lugar nasça uma “religião mundial” onde o deus dessa religião é o Estado (o que não se vê ― segundo Bastiat).

  O Estado não deve impor a educação religiosa ou tentar ser ordenador da vida espiritual da sociedade. Humboldt acredita que “tudo que diz respeito à religião existe para além da esfera de atividade do Estado e de que a escolha de predicadores, assim como tudo aquilo que se relacione com o culto religioso em geral, deve ser deixado livre do juízo da comunidade a que se referem, sem qualquer supervisão especial da parte do Estado”. 

Para o renomado linguista, assim como a educação, o indivíduo deve ser livre na escolha religiosa (embora percebe-se a sua tendência a direcionar suas reflexões para a religião cristã). Desta forma, não cabe ao Estado intromissão na vida religiosa do povo, embora, reconheça o autor, o quanto é tentador para o Estado querer fazê-lo. Isto porque através da religião o Estado pode impor as suas diretrizes ideológicas. Entretanto, não podendo ser uma teocracia ou algo semelhante, o Estado tenta desconstruir a religião, sobretudo a judaico-cristã. 

Embora Humboldt venha afirmar que entre religião e moralidade não haja relação de dependência (ele acredita que religiosidade verdadeira nasce na estrutura interna da sensibilidade humana e sendo assim ela é uma questão moral porém independente desta)  os inimigos da religião sabem que não podendo atacar a fé resta-lhe desconstruir a religião e seus dogmas a partir da inserção de elementos subversivos e revolucionários no seio da igreja a fim de reconstruí-la   numa nova religião, aquela chamado Estado. É  na moralidade da sociedade que o Estado pode ter acesso a desconstrução da religião conforme esclarece Humboldt: “Meu único objetivo foi o de mostrar que a moralidade humana, até mesmo a mais elevada e substancial, não é de modo algum dependente da religião“.

Conclusão 

Diante do que aqui foi exposto podemos  concluir que, Humboldt, assim como todos aqueles que pensaram o Estado como uma instituição necessária e pouco intervencionista compreendem a liberdade individual como a máxima  representação da felicidade do próprio indivíduo; postulam que a propriedade privada é  fruto do trabalho incansável daqueles que querem uma nação economicamente forte; argumentam que quando o indivíduo trabalha para si o faz para toda a coletividade e, portanto, não existindo coletividade sem indivíduos não há , por conseguinte, sociedade sem indivíduos. Muitos homens de saberes entenderam que o papel do Estado não é  ser um provedor de todas as necessidades do indivíduo, mas que cabe ao Estado criar as condições para o pleno crescimento  econômico baseado na justiça e na liberdade, o verdadeiro caminho para a felicidade dos justos. Logo, um governo justo taxará pouco e, quando o fizer, será pautada no respeito aos direitos dos cidadão, devolvendo para o povo cada  centavo arrecadado sob a forma de benefícios úteis, demonstrando assim um profundo respeito para com seus governados. 

Infelizmente não é  o que se vê atualmente. Destarte, os limites de Ação do Estado encontram-se,  antes, na consciência dos nossos políticos que tendo tudo para facilitar a vida do indivíduo, dificulta-a através do paternalismo, face obscura do poder político. Quando o povo se torna servil ao Estado em troca das suas migalhas o preço a pagar é alto demais pois, no final, é o indivíduo que perde ao se acostumar a depender do governo para tudo. Por fim, Humboldt conclui postulando o seguinte princípio o qual usamos para encerrar este pequeno texto: “No que diz respeito aos limites da sua atividade, o Estado deve se esforçar  por manter as condições  das coisa tão próximas daquelas prescritas pela verdade e pela teoria justa, e desde que não esteja em oposição as razões da verdadeira necessidade”.