Ideologia e conservadorismo, uma distinção

Conservar é manter as coisas num estado em que elas estão depois de percorrerem uma longa estrada, adicionando experiências de maneira seletiva e pragmática. Tudo aquilo que dentro do seu universo conhecido pode ser chamado de experiências, ao longo do tempo, servirá de colunas para sustentar as realidades futuras. Para criar é preciso preservar. Nada na história da humanidade começou do zero. Exceto o Criador, que não tem início e nem fim, tudo mais que existe, teve início e foi melhorando num processo seletivo contínuo. Todo o ser humano teve, obrigatoriamente, que se apoiar no passado, seja como fonte de inspiração, seja como um modelo que delineia as novas direções. Idealizar o novo mundo e o novo homem é utopia, é ideologia. Essa é a essência de A Política da Prudência, livro que reúne textos das conferências e palestras apresentadas por Russel Kirk entre 1986 e 1991.

O que tem a ver ideologia com as ideias conservadoras? Se entendermos que o ideólogo busca a destruição do passado e das coisas permanentes em detrimento a um futuro incerto, sonhador, utópico, enquanto o conservador pensa e age de maneira oposta, tendo nas coisas permanentes a sua filosofia de vida, então ambos se encontram em lados antagônico, portanto, no âmbito político e cultural divergem em ideias.

Contudo, não é tão simples ver essas noções apenas como uma dicotomia, pois, para compreender as suas diferenças, é preciso compreender o significado de um e de outro. Primeiro a ideia de conservar não é algo inerente ao conservador. Na verdade, somos todos conservadores. A esquerda é conservadora em seus princípios ou os livros de Karl Marx devem ser queimados e esquecidos por dormirem no passado? Podem argumentar alguns: as teorias marxistas são renovadas todos os dias na mente de homens que sonham com um futuro glorioso para a humanidade. Mas isso não significa que os marxistas acordam todos os dias sob a luz de novas ideias utópicas. Se isso fosse verdade, do ponto de vista conservador, as ideias de Marx seriam coisas do passado, portanto, deveriam ser esquecidas ou remodeladas sob novos prismas. Mesmo quando o marxismo adquire uma nova semântica, ainda assim, é do marxismo que se está falando. Dessa maneira, o passado vive naquilo que derramou sobre si o verniz do novo e se aplica tanto ao pensamento conservador como ao pensamento de esquerda. O mais convicto progressista é na alma um conservador, pois, sob uma ideia concebida lutará por ela até a morte. Por acaso aquilo que nasce já não pertence ao passado? Hoje presente, amanhã não será passado?

A Política da Prudência nos mostrará essas diferenças de ideias e princípios. Numa visão muito clara daquilo que Russell Kirk chama de coisas permanentes, a obra é uma crítica às ideologias e uma defesa contundente aos princípios conservadores, bem como oferece proposições que sustentam que a política dos conservadores fundamenta-se no terreno da prudência.

O que é ideologia

Antes de escrevermos a respeito de alguns capítulos de A Política da Prudência convém entendermos o que é ideologia, uma vez que há uma confusão tremenda a girar em torno da tão polêmica palavra. Segundo a Wikipédia, o termo foi criado em 1801 pelo conde de Tracy que deu a ela o significado de ciências das ideias. Segundo o portal Significados, ideologia é “conjunto de ideias, pensamentos, doutrinas ou visões de mundo de um indivíduo, ou de determinado grupo, orientado para suas ações sociais e políticas”. Portanto, é fácil perceber que a ideologia é matéria do idealismo, dado que “idealismo é a qualidade do que é ideal. É a representação das coisas sob a forma ideal. É a propensão ou inclinação do espírito para o devaneio, para o ideal. O ideal é o que existe somente na ideia, no imaginário, é o fantástico, o modelo sonhado”, descreve o portal Significados. Uma vez compreendido o significado da palavra ideologia, adentramos então no universo de ideias de Russell Kirk e sua obra.

A Política da Prudência

No capítulo “Os erros da ideologia” Russell Kirk explica a diferença entre o conservador e o ideólogo. O primeiro, acredita que “a política é a arte do possível” e contextualizando conclui, “ele [o conservador] pensa nas políticas de Estado como as que intentam preservar a ordem, a justiça e a liberdade”. Ao passo que o segundo [o ideólogo], “pensa na política como um instrumento revolucionário para transformar a sociedade e até mesmo a natureza humana”, e mais adiante afirma: “o ideólogo promete a salvação neste mundo, declarando, ardentemente, que não existe outra realidade”.

É nisso que consiste a A Política da Prudência a que Kirk se refere na presente obra. Para Kirk, o conservador tem a prudência como princípio. Ele acredita que o fato da humanidade ter chegado até aqui é tão-somente fruto das experiências boas ou ruins que foram fundamentais para formação dos nossos valores, bem como a fundamentação das nossas instituições. A humanidade não evolui aos saltos. Pelo contrário, as experiências de uma geração serviram de inspiração para as subsequentes. O que somos e o que sabemos não surgiu num passe de mágica, o nosso conhecimento em todas as áreas é o acúmulo bem-sucedido das experiências de pessoas que viveram antes de nós e adicionaram às experiências daqueles que viveram em gerações anteriores às suas. O que somos e pensamos, herdamos dos que não se encontram mais entre nós, mas que os degraus que eles construíram nos permitiram chegar até aqui.

Neste contexto, a mudança prudente é bem-vinda desde que ela seja absolutamente necessária e não fruto dos devaneios ideológicos. Não se pode mudar por mudar. Quando as instituições e valores são sólidos a evolução é permitida a fim de tornar melhor o que já era bom. A ideologia seduz pelo seu discurso fácil e cheio de apelos emocionais. O seu efeito sobre as massas que de alguma forma nutre alguma revolta contra o sistema é latente, pois, conforme esclarece Kirk “a ideologia pode atrair os entediados da classe culta, que se desligaram da religião e da comunidade, e que desejam exercer o poder. A ideologia pode encantar o jovem parcamente educado, que, em sua solidão, se mostra pronto a projetar um entusiasmo latente em qualquer causa excitante e violenta”.

Conforme citado anteriormente, todos somos conservadores. Entre nós, há um tipo genérico de conservador que Kirk evidencia em A Política da Prudência denominado de “conservadorismo popular”, o qual subdivide em mais dois tipos de conservadorismo nos Estados Unidos, distinguindo-os em “conservadorismo populista” e “conservadorismo popular”. Este caracteriza-se pela convicção elementar de que a cura para a democracia é mais democracia, aquele pelo fato dos indivíduos serem conservadores nos costumes e tradições, assim como primam os seus valores e princípios na religião, família, propriedade e liberdade. Do mesmo modo o conservador popular sabe que é imperfectível e que o nosso papel é viver da melhor maneira possível tendo como alicerce os princípios aqui enumerados.

No primeiro, há o Império das minorias (e não o despotismo da maioria como temia Alexis de Tocqueville) e a sua crença de que pode transformar o mundo a partir do ativismo utópico socialista. No segundo, o intuitivo sentimento que a vida não é perfeita, que o melhor mundo é aquele que nos é real e que aquilo que venceu o teste do tempo deve ser preservado, assim como o novo deve ser submetido ao teste do tempo. Neste último, nos ensina Russell Kirk, reside a essência do conservadorismo popular, aquele que despido de qualquer interesse político, histórico e filosófico se entrega aos ditames da natureza.

Este fenômeno se espelha de maneira semelhante aqui no Brasil. Porém, em nossas terras, há uma diferença marcante: se nos Estados Unidos o conservador o é por natureza, aqui o conservador o é por ignorância e conveniência. Lá, o americano traz consigo um espírito conservador que resiste à aproximação com a política. Aqui, o brasileiro pensa que é um conservador na política, porém, na realidade não tem o espírito conservador que se vê em terras yankees, portanto, é conservador apenas nas aparências.

Um outro tipo considerado por Kirk é o dos “conservadores culturais”. Cultura e religião são a base do pensamento e da atitude do conservador. Ele herda da comunidade os princípios que o fazem ter profundo respeito pela tradição, costume e busca preservá-los. Ele encontra na religião o elo espiritual que dá a comunidade um sentido transcendental que é Deus. Infelizmente a Igreja deixou-se corroer pelo progressismo e se distanciou da cristandade conforme Christopher Dawson (1889–1970) demonstra em seu livro Progresso e Religião em que investiga historicamente essa relação. Anota Russell Kirk que “a sobrevivência das igrejas como organizações humanitárias ou políticas não significa a sobrevivência da fé religiosa”. De outro modo, a decadência do Ocidente está diretamente relacionada com aquilo que T.S. Eliot chamava de: A Ideia de uma Sociedade Cristã. A cultura do cientificismo, segundo visão de Russell Kirk (1888–1865), que predomina em todas as ações humanas, é responsável pela decadência do ocidente uma vez que atinge a sociedade em seus valores morais. Para T.S. Eliot, salvar a cristandade não vem antes de repensar os valores e fé cristãos. Com efeito, o resgate da humanidade das garras do secularismo passa antes pela necessidade de uma reforma na Igreja e a aproximação desta com as expectativas e percepções dos fiéis.

Neste sentido, os conservadores culturais, são um forte aparato contra o secularismo que subverte moralmente a sociedade cristã. Aqui entra o importante papel dos conservadores culturais. Para Russell Kirk “os conservadores culturais esforçam-se em apoiar as melhores características da civilização norte-americana, da vida que conhecemos e vivemos reconhecendo, é verdade, que nem tudo na cultura de hoje merece estima e que a mudança prudente e gradual pode ser a melhor maneira de se preservarem as coisas permanentes”. Continuando, esclarece, “a cultura, a civilização, que os conservadores culturais esperam revigorar é, em grande parte, a manifestação norte-americana do que se chama de civilização cristã, aquela grande cultura originária do pequenino culto de alguns galileus de dois mil anos atrás”.

Há um grupo especial na história dos americanos que não encontrou nenhuma sintonia com a cultura norte-americana. São os proletariados. Neste capítulo Kirk reflete sobre a perspectiva do proletariado na visão conservadora. Este capítulo é de nosso interesse porque ele espelha a realidade brasileira.

Conforme Kirk, o proletariado, em sua maioria nunca chegou a se familiarizar com o pensamento, a cultura e os costumes norte-americano. Ele julga que os proletariados “tornaram-se desculturados, em vez de aculturados, e os demagogos fizeram deles presas fáceis”. Kirk mostra que Detroit representa o berço do proletariado americano e como eles surgiram nesta cidade. Não há como não comparar com as origens dos nossos proletariados aqui no Brasil. Cá, o nascimento das favelas tem, de certa forma, algum parentesco com Detroit. Contudo, não parece ser assim tão de fácil explicação quanto para o caso de Detroit.

Por exemplo, no Brasil temos alguns bairros, outrora nobre, que cederam lugar para a migração da classe mais pobre (entre eles muitos proletariados no contexto kirkiano). Porém, não foi a industrialização a causadora do nascimento dessa classe como no caso de Detroit. Aqui houve a migração das pessoas de maior poder aquisitivo para áreas mais afastadas, causada por outros fenômenos migratórios. Parte da população migrou porque certos grupos, antes importantes centros financeiros e comerciais, viram-se obrigados a migrar para outras áreas porque a atual não comportava a crescente demanda gerada pelo crescimento econômico, por conseguinte não só mantendo como também atraindo das periferias uma população carente em todos os aspectos. Além disso, o crescimento do setor de serviços aliado a infraestrutura arcaica que data do Brasil colônia-Império contribuíram para o aceleramento migratório.

Como exemplo cito o caso do bairro do Comércio e do Centro Histórico, ambos na cidade de Salvador, localizada no estado da Bahia. Estes dois bairros, outrora lugar da nobreza e pessoas abastadas e comércio pujante, hoje é habitado pela classe menos favorecida social e economicamente. Situações como essa ajudaram no agravamento da desigualdade social no Brasil e é muito provável que estejam nestes fatos as origens das favelas, dessa maneira, temos um contingente bem maior de proletariados e o terreno de altíssima fertilidade para os políticos demagogos como nos lembra Kirk.

Conclusão

Russell Kirk sustenta que “o que precisamos transmitir é a política da prudência, não beligerância política”. O conservador é um prudente por natureza. Não dá passo em terreno movediço. Sua segurança ao avançar na vida advém das suas experiências passadas e dos princípios criados por aqueles que se dedicaram a pensar antes de nós. O tempo foi o maior juiz das ideias desses gigantes e o indivíduo aquele que as pôs a prova. Por outro lado, o ideólogo é um sonhador perigoso, pois, para eles os fins sempre justificam os meios. Para eles, a morte de 100 milhões de pessoas está legitimada pelas causas revolucionárias e é diretamente compensada em função da criação do paraíso terrestre.

Que não se confunda o conservador legítimo com o imobilista e reacionário, este último é utopista tanto quanto o é os ideólogos, pois, aquele vive um passado que só existe na cabeça dele, este quer desconstruir a civilização atual para levantar uma nova idealizada civilização que será habitada por um novo tipo de seres humanos. Já o imobilista recusa qualquer ideia de mudança. Este paralisou-se no tempo e pensa que tudo tem que ficar exatamente como está. Ambos, irracionais em suas ideias e crenças. Por outro lado, o conservador legítimo sabe que progresso é inexorável, sobretudo os de cunho científico. O que o conservador legítimo se opõe, veementemente, é a ideia de desmantelar instituições, valores e princípios que nos trouxeram até aqui, que passaram pelo teste do tempo, que é a sustentação da sociedade ocidental.